Faca de Água foi escrito pelo autor Paolo Bacigalupi e publicado em 2016 pela editora Intrínseca.

SOBRE O LIVRO

Em uma época não muito distante, o sudoeste norte-americano enfrenta os seus piores momentos de seca. Ainda que há muitos anos atrás tais problemas já tivessem sido alertadas, nada foi feito para evitar. Hoje, a população paga caro e quem se dá bem é quem tem dinheiro. A água é disputada com unhas e dentes por governos, empresas milionarizarias, principalmente entre a Califórnia e Las Vegas, que disputam o direito de uso do rio Colorado. Enquanto isso, cidades inteiras desmoronam sob sua própria mercê. Angel é um mercenário que, a mando de Caterine Case, a manda-chuva das arcologias em Las Vegas, vai até lugares onde há distribuição de água e, com um equipe “policial”, roubam e tomam para si os direitos de uso. Ele e os outros são conhecidos como Facas de Água, já que sua função é cortar o abastecimento de quem eles quiserem.

Mas algo estranho está acontecendo em Phoenix e Case manda Angel para investigar. Ao chegar na cidade, ele cruza caminho com a jornalista Lucy Monroe, ganhadora do prêmio Pulitzer e que há anos escreve matérias de investigação e de afronta aos manda-chuvas da água. Lucy está procurando respostas para o aparente assassinato de seu amigo, Jamie, que dizia ter algo valioso e que mudaria toda a cidade. De forma não muito amigável, Angel e Lucy vão unir forças para investigar a possível rede de conspiração que se estende pelas cidades e descobrir quem é que está por trás de tudo, comandando o jogo.

“Alguém terá que sangrar para que todos possam saciar a sede.”

Não muito longe dali, Maria, uma texana que outrora tinha uma vida boa, está em grande conflito interno entre fazer o que é certo ou fazer o que é necessário. Ela quer uma vida melhor, fugir para norte, onde dizer ainda chover e ter água em abundância, mas a situação está cada vez mais difícil e ela vai ter de tomar medidas drásticas que vão mudar a forma como ela vê as coisas. Sua entrada no jogo pela sobrevivência vai ditar não apenas o seu futuro em uma terra árida e sem vida, mas também será a chave para resolver o mistério que Lucy e Angel investigam.

MINHA OPINIÃO

A primeira vez que eu ouvi falar desse livro foi na metade do ano passado. As críticas estavam boas e a proposta me chamou muito a atenção, mas, como se parecia muito com distopias  (e eu já estava saturado delas) resolvi esperar um pouco e ver se a vontade permanecia. O que encontrei com a leitura foi uma trama bastante crível e perturbadora, suficiente para despertar reflexões sobre o mal uso que fazemos dos recursos naturais e até onde vai nosso despreparo em políticas ambientais e sociais em relação ao cuidado desse recurso tão necessário à vida. O autor soube trabalhar questões importantes como a pobreza, exploração comercial, ondas migratórias clandestinas entre as fronteiras americanas, etc, de modo que, mesmo a história se passando em uma época futura, ela se parece tão real e tão presente aos dias atuais.

As pessoas só vivem realmente quando estão prestes a morrer — disse ele. — Antes disso, é um desperdício. Você não aprecia como é bom até estar realmente na merda.”

Eu lembro que muitos anos atrás eu li uma mensagem que se chamava “carta de 2050” e que falava das dificuldades da sociedade em viver sem ter o mínimo de água para beber. Na época eu fiquei chocado, pois não entendia como isso poderia vir a acontecer e, se já estivesse acontecendo, porque ninguém tomava posição parente o problema. Mas hoje compreendo que de fato isso um dia vai ser real – aliás, já está sendo – , e mesmo que tenhamos vários sinais bem na nossa cara, estamos empurrando com a barriga e fazendo de conta que o problema não está perto.

Assim, a trama de Faca de Água não erra em ser cruel e dolorosa em criticar exatamente esses pontos relevantes. Há anos os sinais de que secas se tornarão mais frequentes, que a água potável está ficando escassa, e mesmo assim, as políticas ambientais e governamentais pouco fazem para impedir o apocalipse. O futuro imaginado no livro é decorrência dessa falta de percepção e preocupação por parte dos governantes, que agora perecem junto com a população, enquanto estrangeiros e magnatas disputam entre si o domínio das terras onde existem lençóis freáticos ou fontes potáveis.

“Não são as mentiras. É o silêncio. O silêncio é que me incomoda. Todas as coisas que não se dizem. Todas as palavras que não se escrevem.”

Os três protagonistas que dão vida ao enredo são bem distinto entre si, mas vivem no mesmo barco e enfrentam a situação de forma similare, ainda que para um deles a dor e a desesperança seja maior. Angel era um garoto de classe baixa que por muito pouco não fora levado dessa para a outra vida. Caterine Case viu no garoto a vontade e sagacidade necessária para comandar os seus esquemas por baixo do pano. Em troca, ele teria tudo do bom e do melhor. Angel sabia que roubar a água dos outros era errado, mas o que é correto a se fazer quando sua vida depende de quem detém do poder? Curioso, entretanto, notar como a sua percepção muda um pouco ao longo da trama. Quando ele se vê no meio de uma disputa mortal por água, as suas convicções são abaladas e por vezes ele pensa em abandonar tudo e recomeçar. Porém, uma decisão assim não é algo fácil de se tomar, principalmente quando você já viu os dois lados da mesma moeda.

Oposto a Angel, temos a jornalista Lucy, que já fora premiada muitas vezes e, em busca da verdade, resolveu abandonar seu conforto no norte e se infiltrou no meio da destruição, para expor ao mundo o que de fato acontecia. Ela há muito investigava o sumiço de diversas famílias que se arriscavam em travessias clandestinas para a “terra aonde ainda chove”, mas sempre que chegava perto de algo, as pistas simplesmente sumiam. Apesar de ser uma personagem bem interessante, eu não gostei muito de algumas de suas condutas, e de certa forma fiquei desconfiado do verdadeiro propósito dela na trama. Me pareceu que ela agia de má intenção algumas vezes, talvez por ser um pouco descrente, ou mesmo por ter vindo de uma realidade diferente. Afinal, quando ela estivesse de saco cheio, poderia voltar para o norte, viver uma vida branda e deixar para trás todo aquele sofrimento que havia visto.

Maria é a personagem que mais chega a causar empatia, ainda que sua participação pareça um pouco deslocada. Ela sempre vivera ali nos arredores de Phoenix, e presenciou a mudança social muito repentinamente. Um dia ela tinha água para tomar banho, em outro ela não tinha uma gota para beber. Agora ela precisa viver de migalhas, sonhando com um dia melhor e resistindo às tentações que lhe cercam. Maria é pura, não conhece a crueldade humana como ela de fato é, e ao contrário de sua amiga, não quer vender o corpo em troca de algum dinheiro ou litros de água. Mas a situação se torna cada vez mais opressiva, e pode ser que o seu pior medo precise se tornar sua única forma de ganhar a liberdade.

“O suor era a história de um corpo, comprimido em joias, acumulado na testa, manchando camisas. Ele revelava tudo sobre como uma pessoa acabava no lugar certo na hora errada, e se a sobreviveria mais um dia.”

Eu gostei bastante do livro, pois além de ser ambientado como um suspense, e não como uma distopia, ele reflete muitos aspectos da realidade atual. É possível traçar uma analogia entre os imigrantes ilegais nas fronteiras dos rios com os imigrantes mexicanos que perdem suas vidas tentando entrar nos Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Também porque a trama mostra que no mundo atual, de fato o dinheiro é um deus, e pessoas não são mais do que meros objetos descartáveis. A vida não tem importância, não tem significado quando tudo pode ser conquistado por montantes de cédulas.

O que deixou a desejar mesmo foi a atuação dos personagens. Sabe quando parece que os protagonistas não tem ideia do que estão fazendo? Mais ou menos assim. Eles são apresentados de forma um tanto quanto fria, e os encontros e desencontros entre eles me pareceu um tanto quanto forçado. Creio que poderiam ter sido melhor explorados, talvez se o background fosse mais explorado,  a relevância dos personagens se tornaria mais evidente. Mesmo assim, é justo dizer que o livro tem seu merecido crédito que certamente é uma leitura que vale muito a pena, pois ainda que seja mera ficção, as críticas que o autor faz nela são bem atuais.

FACA DE ÁGUA

Autor: Paolo Bacigalupi

Editora: Intrínseca

Ano de publicação: 2015

Num futuro árido e tumultuado, em que a água ganhou o status de commodity mais valiosa, o direito de uso das fontes e dos rios é alvo de disputas ferrenhas. Uma guerra entre governos, órgãos públicos e empresários, na qual vale tudo. Enquanto advogados e burocratas armam-se com infinitos processos judiciais, mercenários e militares subjugam proprietários de terra, implodem estações de tratamento e interrompem o abastecimento de regiões inteiras.
Nesse cenário surge Angel, um “Faca de Água”, um dos muitos mercenários com a missão de cortar e desviar o fornecimento de água a mando de quem paga mais. Lucy é uma jornalista premiada que decidiu revelar para o mundo a realidade da Grande Seca. Maria é uma jovem cuja vida foi destruída pelos efeitos das mudanças climáticas. Quando o direito de usar a água significa dinheiro para alguns e sobrevivência para outros, o que esses três personagens não sabem é que seu encontro é um marco que poderá mudar tudo. Um novo fiel da balança que sempre pendeu para o mesmo lado. Futurista, mas nada improvável, “Faca de Água” é um thriller que perpassa por questões econômicas, ambientais e éticas numa narrativa que extrapola o gênero, daquelas que se lê de uma tacada só e depois leva-se um longo tempo assimilando.

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