A Arma Escarlate é o livro de estreia da escritora carioca Renata Ventura, publicado pela editora Novo Século em 2012.

Sobre o Livro

A Arma Escarlate acompanha o jovem Hugo, uma criança moradora da favela Santa Marta no Rio de Janeiro. Hugo pode até ser novo em idade, mas já passou por muitas situações ruins morando dentro de um contêiner precário na favela, lidando com o descaso do governo com a educação dos jovens do Santa Marta e convivendo diariamente com a realidade do tráfico de drogas.

Em uma atitude impensada, Hugo decide ajudar o chefe do tráfico do morro, mas tudo dá absolutamente errado e além de ele arranjar uma inimizade enorme com um dos bandidos mais perigosos do Santa Marta, também descobre, durante um tiroteio, que é bruxo e recebe a carta da Escola de Magia Notre Dame do Korkovado convocando-o para o início do ano letivo.

“Em sua superfície, escrito com letras meticulosamente desenhadas, estava seu nome. […]: “Sr.Idá Aláàfin Abiodun, Mui respeitosamente, venho convidá-lo a se unir ao corpo discente da excelentíssima escola de bruxaria Notre Dame do Korkovado”

Inicialmente desacreditando do que a carta dizia, Hugo deixa para trás a mãe e avó em busca de escapar do traficante com quem ele brigou, indo buscar uma chance de sobreviver na Korkovado. Ferido e sozinho, Hugo vai para o mercado bruxo, onde encontra a varinha escarlate, uma varinha rara feita do fio de cabelo do curupira, e lá, a varinha escolhe Hugo como seu dono.  

Com a varinha em mãos e todas as esperanças no que a Korkovado pode proporcionar, Hugo vai para a escola e descobrimos junto dele o que o Brasil pode proporcionar de magia. Seria realmente a Korkovado a chance de Hugo mudar a vida da sua família? O que tem de diferente do sistema bruxo brasileiro pro sistema que conhecemos, aqui mesmo, na vida real? E, afinal, o que levou a varinha escarlate a escolher Hugo?


Minha Opinião

Uma das primeiras histórias que a Renata conta em todas as entrevistas e painéis, assim como na apresentação do livro, é que um dia a J.K. Rowling respondeu um fã dizendo que eles eram livres para escrever sobre o mundo mágico de seus respectivos países e que ela os incentivava a fazer isso.

Bastou essa fala para que a Renata Ventura escrevesse o que para mim é a melhor fantasia nacional de todos os tempos, criando um dos universos mais ricos que já li e com os personagens mais complexos e reais que são possíveis de achar.

Hugo Escarlate é provavelmente o protagonista mais anti-Harry Potter que existe na face da terra bruxa. Sarcástico, egoísta, volátil e impulsivo, Hugo não é dos personagens mais fáceis de se gostar, sua personalidade é extremamente moldada por um ideal de justiça, o que seria glorificável, se ele não fosse extremamente dúbio em suas atitudes e cometesse tantos erros durante a narrativa.

Hugo é uma criança que já enfrentou o que muito adulto jamais enfrentaria, e há momentos em que o amamos e outros que é impossível perdoar as atitudes que ele toma. Hugo fala sem pensar, magoa os amigos que conhece na Korkovado e muitas vezes se arrepende para depois cometer os mesmos erros de novo.

Um protagonista tão abertamente falho e que ainda assim cresce com o decorrer das páginas é um dos primeiros elementos que mais chamam a atenção quando o livro começa e, mesmo com um gênio difícil de lidar, Hugo consegue segurar a atenção dos leitores até o final.

“Bença, vó”, ele pediu, beijando-lhe a mão. Mas o olhar de sua Abaya não estava transbordando de orgulho como o de Dandara. Era um olhar estranho, um misto de dever cumprido e cautela. […] Abaya tomou o rosto de Idá em suas mãos e sussurrou, “Quanto maior o poder, maior a queda, Bruxo. Lembre-se disso”.

Aliás, personagens bem elaborados e complexos é o que tem de sobra dentro das paredes da Korkovado. A Renata logo no começo apresenta o leitor para o grupo de amigos com quem Hugo vai ter mais afinidade: os Pixies, que são estudantes de séries mais adiantadas que ora tocam o terror na escola, ora defendem os alunos com unhas e dentes das mãos de uma direção escolar que quer minar a criatividade e a esperança deles a todo custo.

Caimana, Viny, Índio e Capí são os personagens que, no começo, parecem só mais um grupo de jovens comuns que gostam de fazer brincadeiras nos corredores, mas a que medida Hugo os conhece, nós também os conhecemos e enxergamos neles personalidades diferentes.  

Talvez o personagem que mais exemplifique isso seja Capí, um dos alunos mais especiais da Korkovado, filho do zelador da escola. Capí tem provavelmente a alma mais pura e doce dentro dos pixies, mas sua bondade apesar de servir como qualidade, também pode ser um defeito: Capí é extremamente mal tratado pelo pai e usado pela direção da escola como empregado particular.

“Os Humanos apodrecem tudo o que tocam”.

“Nem todos”, Hugo retrucou, procurando animá-lo.

[…] Capí repetiu, sem muita convicção, “Pensei que você não confiasse em ninguém”

“E não confio mesmo. Quer dizer, não confiava”

“E agora confia? O que te fez mudar de ideia?”

[…] “Você”, ele respondeu, evitando olhar para o pixie. “Não consigo entender porquê, mas eu confio em você”

Além de Capi, os professores são figura consagrada na Korkovado e atiçam a curiosidade de qualquer um que esteja lendo. Atlas é o professor que encanta qualquer aluno, mas que misteriosamente falta aulas demais e foge das responsabilidades nas horas mais necessárias.

Dalila é a supervisora principal da escola e é uma figura detestável cujo filho, Abel, torna a vida de Capí e de Hugo um verdadeiro inferno. Mas nem de longe o pior inimigo está no estudante ou na maldade de sua mãe.

Em um mundo mágico brasileiro, o perigo vem de dentro e de fora: o autoritarismo. É essa uma das problemáticas mais retratadas no livro, esse é o inimigo que começa a despontar em a Arma Escarlate e que vai se mostrar ainda mais presente nos livros seguintes, criando uma narrativa mágica intrinsecamente ligada com a política, a sociedade e a busca por justiça. A autora cria um mundo mágico mais real do que o esperado, e essa é uma das principais razões para que a sua história seja tão fascinante.

Há também um debate incrível sobre o tráfico de drogas e o vício, cenas graficamente retratadas que mostram a realidade de um mundo que nem de longe é como mostram na TV. A autora soube dar um olhar cuidadoso e muito bem formulado sobre essa realidade em que muitas crianças como Hugo vivem no dia a dia e esse é um dos pontos mais incríveis do livro.

Porém, o prato cheio fica para a magia: não há mundo fantástico mais bem feito, mais incrível e mais envolvente do que o mundo mágico bruxo criado pela autora. Buscando montar um mundo bruxo brasileiro, a Renata Ventura fez o dever de casa de imergir na cultura brasileira e trouxe cada pequeno detalhe dela para dentro dos livros.

Conhecer a Korkovado e o mundo bruxo que a cerca é uma experiência de leitura sensacional. Como a própria Renata falou em diversas entrevistas, o brasileiro só despreza a própria cultura porque não a conhece. Temos medo de zumbis, mas não da mula sem cabeça. Com a Arma Escarlate a gente descobre que a Mula sim é bem mais assustadora e fascinante do que qualquer zumbi norte-americano que exista por aí.

“Ajoelhando-se na cama, Abaya começou: Era uma vez na África um Rei muito poderoso, cujo verdadeiro nome se perdeu no tempo. Nós o chamaremos de Benvindo, como ficou conhecido aqui no Brasil. Seu cajado, de madeira maciça era fonte de inimaginável poder. O poder dos magos e feiticeiros dos tempos antigos, do reino d’África.”

O encanto e o cuidado com que a autora pensa no sistema mágico brasileiro já fica nítido desde o início, a começar pelo fato de que o Brasil não ter apenas uma escola de magia. Um país enorme como o nosso com uma escola só jamais funcionaria, é uma questão bem estrutural. O Brasil então tem cinco escolas de bruxaria; uma para cada região do país. Hugo, por ser carioca, vai para a do sudeste, e essa é a primeira escola que temos contato.

A Korkovado fica escondida dentro da pedra do Corcovado – sim, a do Cristo Redentor – e esconde dentro de si uma praia “às avessas”, escondida dentro da pedra por magia e que figura como o ponto de encontro principal dos alunos. Infelizmente, na história, a Korkovado é controlada por uma coordenação ainda muito conservadora e que quer “Imitar europeu”, deixando de lado a essência da magia brasileira.

Porém, de jeito nenhum os alunos e os professores abaixariam a cabeça para isso. Em meio a brigas e aulas secretas, Hugo –e, por consequência, o leitor – vão aprender o que é a magia brasileira, os animais mágicos que nos cercam e o poder que as palavras da nossa língua tem para produzir magia poderosa.

“Seguinte”, Viny disse, sacando sua varinha, “Tu junta toda a alegria que tu tem dentro de ti e diz Saravá. Não estou falando de memória feliz – isso é outra coisa. Tu precisa SER feliz para conseguir o Axé”

Conhecer a Korkovado é uma das partes mais incríveis do livro, cada sala da escola é uma descoberta nova, a praia é um dos cenários mais lindos que já vi ser descrito em uma obra e é por meio da escola de magia do sudeste que aos poucos me encantei por esse mundo mágico tão a nossa cara.

A Korkovado tem problemas, como se esperaria de uma escola que não recebe o investimento que merecia, mas há algo de especial nela: ela é “nossa”. E essa é só a pontinha do amor que se cria pelas demais escolas que aparecem em livros posteriores. Particularmente falando, as escolas do Norte e do Nordeste se tornaram as minhas favoritas, mas delas o assunto fica pros livros seguintes.

Ao investir na imersão cultural pelo nosso próprio país, a Renata Ventura consegue o feito de tanto fornecer conhecimento novo – não dá para sair da leitura sem aprender pelo menos uma ou duas coisas sobre o Brasil que a gente não sabia antes – quanto de encantar os olhos de quem lê para o tanto de diversidade cultural que o país tem.

É a cultura a verdadeira magia da série, e por ela ser uma magia tão linda e tão rica é que dói mais ainda acompanhar as tentativas que as adversidades da trama promovem de destruir essa diversidade e essa beleza dos estudantes bruxos do Brasil.

É impossível sair da leitura sem redescobrir o Brasil e sem se apaixonar pela magia que existe aqui, por essa razão que esse livro entrou tão facilmente para os favoritos da minha estante. Se você gosta de fantasia, é desse livro que você precisa para se apaixonar por uma fantasia incrível, com personagens tão instigantes quanto humanos e, principalmente: para aprender que o Brasil tem tanta ou mais magia do que qualquer terra medieval fantástica de livros estrangeiros.  

O segundo livro da série – A comissão chapeleira – foi lançado pela Novo Século em 2014, e o terceiro volume – O Dono do Tempo – parte I e II – foi publicado pela mesma editora em 2019.

A ARMA ESCARLATE

Autor: Renata Ventura

Editora: Novo Século

Ano de publicação: 2012

O ano é 1997. Em meio a um intenso tiroteio, durante uma das épocas mais sangrentas da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, um menino de 13 anos descobre que é bruxo. Jurado de morte pelos chefes do tráfico, Hugo foge com apenas um objetivo em mente: aprender magia o suficiente para voltar e enfrentar o bandido que ameaça sua família. Neste processo de aprendizado, no entanto, ele pode acabar por descobrir o quanto de bandido há dentro dele mesmo.

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