A Forma da Água é um livro escrito a quatro mãos por Guillermo Del Toro e Daniel Kraus. É um lançamento de 2018 pela editora Intrínseca.

SOBRE O LIVRO

No auge da Guerra Fria, Estados Unidos e Rússia competiam ativamente pelo poder global. Para ajudar nessa tarefa, uma unidade secreta de pesquisa aeroespacial, chamada Occan, conduzia pesquisas afim de criar novas tecnologias para astronautas. Até que o oficial do exército, Richard Strickland, toma conhecimento de um lendário ser amazônico, chamado de deus Brânquia, um misto entre  homem e anfíbio. Convicto de que esse ser seria a resposta para as inovações que precisavam, ele conduz uma expedição até a América do Sul e, depois de algumas semanas, enfim captura o ser.

No laboratório, o ser é torturado e estudado de todas as formas, mas as pesquisas não avançam. Frustrado constantemente, a vida pessoal de Strickland começa ir a ladeira abaixo, e tudo parece dar cada vez mais errado. Tornando-se obcecado com a criatura, Strickland decide ir até o fundo do poço, custe o que custar. Essa é a pesquisa da sua vida, e precisa ser completada.

“Um paraíso submarino não é preferível a uma vida de pobreza, incesto e violência?”

Elisa Esposito é apenas mais uma das serventes invisíveis que trabalham na Occan, limpando a sujeira que os homens engravatados deixam para trás. Todos os seus dias são iguais: frios, calados e sem graça. Até o dia em que precisa limpar o laboratório F-1 e lá ela descobre algo de infinita beleza: o recurso, o homem-anfíbio. Logo sua vida se enche de cor e sentimento, e apesar da enorme diferença entre os dois seres, um amor sincero surge entre os dois. Mas o que é belo não dura muito tempo.

A obsessão de Strickland ameaça a vida do ser, e Elisa não consegue ficar imóvel diante de tanta violência. Um plano mirabolante se forma em sua mente e ela decide por em prática. Ela vai salvar o deus Brânquia, ela vai libertá-lo. Como ela fará isso ainda não sabe, mas está determinada a dar a sua vida por aquele ser que viu ela como ela é, a aceitou como uma igual, e a amou mesmo apesar do abismo que separa as suas espécies.


MINHA OPINIÃO

Quando optei por ler este livro, eu estava bem dessintonizado a respeito do que se tratava a história, apesar de todo o hype envolta do filme. Logo meu maior receio era encontrar aqui uma história que girasse em torno do romance entre a protagonista e o ser sobrenatural, o homem-peixe. Mas, havia um detalhe o qual eu tinha esquecido de levar em consideração logo de cara: Guillermo Del Toro. E foi por conta desse detalhe – mínimo, mas impactante – que fez com que eu fosse surpreendido inúmeras vezes lendo o livro.

As histórias de Del Toro nunca são “só histórias”, ou apenas focadas em uma única coisa. Ele sempre traz o místico e o improvável, o real e o possível para dentro de suas tramas. A mescla dos temas costuma funcionar bem e ao final, o que temos não é só  mais uma história, mas sim, uma grande fantasia que nos convida a acreditar na beleza dos sonhos.

“Assim é a vida, Elisa. Coisas remendadas juntas, sem sentido, a partir das quais nós, em nossas mentes necessitadas, criamos mitos que nos agradam. Você compreende?”

A narrativa transita por diversos temas, e um deles – talvez o mais relevante – é o da aceitação das diferenças. Elisa Esposito era muda, órfã e com uma vida nem um pouco invejável. Servente da Occan, seus dias se resumiam em limpar a sujeira de seus superiores e, no dia seguinte, fazer tudo outra vez. Porém, a falta de comunicação verbal não era o seu maior problema. Tinha uma amizade sincera com seu vizinho de porta, Giles, um artista gay decadente que mantinha no rosto a jovialidade de quem nunca perde as esperança de um dia melhor. Além disso, no trabalho, sua única amiga é Zelda, uma mulher negra que passa pelas maiores humilhações e preconceitos por não ser branca. Elisa tinha uma vida simples, porém, com pessoas honestas e que transmitiam confiança a ela. E o melhor, ela não julgava quem eles eram. Simplesmente os aceitava, os amava.

É quando então ela faz contato com o ser sobrenatural, o recurso da Occan. Um ser tão estranho e ao mesmo tempo tão igual a ela. Espécies diferentes, locais diferentes, mas ambos viam um ao outro em sua real natureza, em sua real forma. O homem-peixe não a julga por ser muda, humilde ou mesmo desajeita. Em Elisa ele encontra o amparo e o carinho que tanto falta nos seus torturadores. Em meio ao desprezo, Elisa também encontra no ser alguém que a aceita como ela é, que gosta dela por ser quem ela mostrou ser. É por isso que o amor entre as duas criaturas soa tão poético e maravilhoso. Ele toca no fundo de nossas almas, conversa com cada um de nós e mostra que é possível sim acreditar no amor e na bondade, sem a necessidade de julgar o outro. Não é a cor da pele ou os bens materiais de uma pessoa que importam, mas sim, as ações e atitudes que essa pessoa tem.

Isso fica evidente também com o antagonista do livro. Enquanto Elisa é toda humilde e querida, Richard Strickland é o carrasco em pessoa, o homem arrogante a quem todos somente abaixam a cabeça por medo, não respeito. Ele tem uma vida invejável: é casado, tem filhos, é rico e trabalha pro governo. Mas sente-se infeliz com tudo isso, desconta a sua raiva nas pessoa próximas e percebe que cada vez mais sua vida está se tornando um lixo. O trabalho envolvendo o Devoniano (o recurso capturado) está consumindo suas energias e tudo o que ele mais deseja é acabar com tudo logo. Sua obsessão vai crescer e colocará em risco tudo o que ele já conquistou: sua família, seus amigos, seu emprego, sua vida.

“É a imagem de Deus à qual Strickland se referiu, movendo-se como um humano. Porém, se este é o caso, por que Elisa sente que a criatura é todo animal que já existiu?”

O bacana é como os autores trabalharam os temas de forma clara e precisa, usando os próprios personagens relevantes como ferramentas de contextualização. Por exemplo, Giles é gay, mas que vive “escondendo” essa realidade por medo de represálias. Imagine um homem, na idade dos 50 anos, na década de 60, se assumir como gay. Poderia ser o seu fim. Do outro lado, temos a esposa de Strickland, a sra. Elaine Strickland, que aproveita as saídas do marido para procurar emprego e ser uma mulher independente, mas ao mesmo tempo, precisa esconder a verdade do marido por medo do que as pessoas iriam dizer, por medo do que poderia acontecer à ela. A ideia que rondava os anos 60, conforme o livro nos apresenta, era a de que uma mulher não podia ser independente, devia apenas cuidar da casa e dos filhos. Qualquer uma que fosse contra isso seria considerada meretriz, traidora, e por aí vai. Mas Elaine quer seguir o caminho dela, sem quem ela é, recomeçar. Mudar de cidade se preciso fosse.

Há uma cena em particular que toca bem fundo no assunto em relação ao preconceito racial. Me refiro a um diálogo entre Zelda e seu marido, onde ele a alerta que ajudar Elisa ou mesmo se intrometer nos assuntos de interesse dos chefões da Occan só traria mais problemas para eles, já que por serem negros, enfrentavam todo o tipo de descriminação que se possa imaginar. Fora as injúrias e ofensas, seria muito ruim se ela perdesse o emprego. Como ele mesmo dá a entender, negros não tinham voz nem vez, precisavam se contentar com o que possuíam. O mais triste em relação a isso é saber que, mesmo a narrativa ilustrando os anos 60, muito do que o personagem expõem ainda acontece nos dias de hoje, em pleno 2018.

“A vida é apenas o afogamento dos nossos planos.”

Como eu disse no começo, eu fui surpreendido várias vezes pela narrativa. Eu esperava um foco maior no romance, porém, isso foi exatamente o que menos teve. O equilíbrio entre os personagens e seus dilemas pessoais, as conspirações envolvendo agentes do governo americano e russo e, principalmente, as críticas sociais expostas de formas tão claras e objetivas fizeram do livro uma das melhores tramas que já li até hoje. Há um cuidado especial dos autores em costurar os pedaços do quebra-cabeça, em dar sentido a tudo o que está ali. Nada é por acaso, nenhuma palavra é dita só por preencher lacunas. Tudo se completa, tudo toma forma e significado.

Enfim, não me surpreende que o filme tenha recebido tantas indicações ao Oscar – e ganhado como melhor filme. De fato é uma narrativa poética, melancólica e nostálgica, que nos faz voltar  às essências do ser humano e de nossos sentimentos. Uma forma de mostrar que a bondade não vem do seu status social ou da cor da sua pele, ou de sua opção sexual. A bondade vem de dentro de cada um de nós, e somente nós é que podemos da-la sem querer algo em troca.

A FORMA DA ÁGUA

Autor: Guillermo Del Toro e Daniel Kraus

Editora: Intrínseca

Ano de publicação: 2018

Richard Strickland é um oficial do governo dos Estados Unidos enviado à Amazônia para capturar um ser mítico e misterioso cujos poderes inimagináveis seriam utilizados para aumentar a potência militar do país, em plena Guerra Fria. Dezessete meses depois, o homem enfim retorna à pátria, levando consigo o deus Brânquia, o deus de guelras, um homem-peixe que representa para Strickland a selvageria, a insipidez, o calor — o homem que ele próprio se tornou, e quem detesta ser. Para Elisa Esposito, uma das faxineiras do centro de pesquisas para o qual o deus Brânquia é levado, a criatura representa a esperança, a salvação para sua vida sem graça cercada de silêncio e invisibilidade. Richard e Elisa travam uma batalha tácita e perigosa. Enquanto para um o homem-peixe é só objeto a ser dissecado, subjugado e exterminado, para a outra ele é um amigo, um companheiro que a escuta quando ninguém mais o faz, alguém cuja existência deve ser preservada.

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