Publicado originalmente em 1903, Ânsia Eterna é uma coletânea de contos da escritora Júlia Lopes de Almeida e possui diferentes edições no Brasil, sendo uma delas a da editora Estronho, sob o selo Clássicos Essenciais.

Sobre o Livro

Reunindo cerca de 26 produções literárias da escritora Júlia Lopes de Almeida, Ânsia Eterna contém contos que discutem as dinâmicas não saudáveis das relações familiares entre pais e filhos; a crueldade das doenças mentais e do tratamento dado a elas no começo do século XX e ainda discute o jogo de aparências da classe média alta da época com suas hipocrisias, traições e fofocas sussurradas no meio de corredores e salões. 

Destacando o diferente estilo de escrita da autora, a coletânea também possui contos reflexivos, contos apreciativos e ainda uma considerável quantidade de contos de tendência gótica, com narrativas viscerais que aproximam-se dos contos de horror e morte de Edgar Allan Poe e outros autores

“Quero escrever um livro novo, arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo, palpitante, com todos os retalhos de céu e de inferno que sinto dentro de mim; livro rebelde, sem adulações, digno de um homem”.

Com maior e menor impacto, cada conto dispõe de possibilidades de discussão sobre situações sociais de marginalização, luto e injustiça como um todo, mas destaca-se sempre a condição feminina em meio aos variados processos de violência social imposto a mulheres, principalmente para mulheres das classes mais miseráveis. 

Cada conto possui alguns questionamentos bem contundentes: é possível viver com a culpa? Nossas paixões resistem ao julgamento social imposto pelas aparências? Em uma situação de violência e desamparo, existe julgamento moral que não seja recheado de hipocrisias? Desafiando o leitor em uns, levantando reflexões em outros, Ânsia Eterna possui um recheado repertório de narrativas que falam muito sobre o Brasil do começo do século XX. 


Minha Opinião

Coletâneas de contos são sempre difíceis de comentar ou mesmo apresentar por possuírem um repertório de narrativas muito extensos e ter sempre a situação de o leitor gostar de um conto e não de outro. Com “Ânsia Eterna” o sentimento é similar e potencializado a mil: a escrita de Júlia Lopes de Almeida é muito firmada nas descrições e debates expositivos que seus personagens levantam, então é perfeitamente compreensível que essa condução literária funcione em um momento e não conquiste em outros. Contudo, mesmo com ocasionais contos que não brilhem tanto, “Ânsia Eterna” é uma coletânea que vale a pena por seu impacto final como um todo. 

Em termos de destaques narrativos, ressalta-se na coleção a variedade de decisões criativas. Contos mais amenos dão lugar para contos góticos com alto teor de narrativas de terror, bem como histórias sobre paixões cedem espaço para discussões sobre as máscaras sociais glorificadas que precisam ser mantidas enquanto se esconde o verdadeiro eu das pessoas por trás dos panos.

Exemplar dessa relação, um dos contos que conquistam o leitor pelo poderoso impacto temático e linguístico que provoca é o conto “Os Porcos”, que acompanha a infeliz saga de uma menina pobre que engravidou do patrão e foi abandonada pelo pai da criança, bem como é humilhada e rechaçada dentro da própria casa. Sozinha e assustada, Umbelina decide que irá matar a criança assim que ela nascer, uma vez que já foi ameaçada pelo pai com a possibilidade de que seu filho seria imediatamente jogado aos porcos quando ela o tivesse. 

Para evitar esse destino, a jovem mãe decide acabar com a vida do filho com suas próprias mãos, de modo a evitar que o pai faça a barbaridade que prometeu. Nesse conto, não apenas o leitor encontra um dilema moral impressionante que força nossa percepção quase sempre bilateral entre “bem vs mal” ao limite, já que estamos acompanhando uma jovem solitária que vive em uma situação de extrema miséria e violência, de modo que suas decisões nunca são simples e nossa percepção sobre ela também não pode cair em vazias noções de “certo ou errado”. Como também, o conto é escrito dentro de uma construção ficcional de terror que é impressionante, as descrições são viscerais e cruas, toda a áurea do conto puxa uma herança de contos góticos muito vívida e faz com que essa história termine de uma forma que o leitor jamais vai esquecer. 

Quem não amou na vida, não tem nem a doçura da saudade para amenizar-lhe a tristeza deste exílio.”

Diante desse conto, é quase estranho pensar que o conto de abertura do livro, que dá  inclusive nome ao título, seja um conto mais ameno e firmado no período contemporâneo apresentando as reflexões de um escritor que vê-se intrigado pela presença de uma jovem no parque que lhe desperta a atenção, mas que nunca reage a sua presença. De narrativa mais leve e discutindo processos criativos e sentimentos rompantes que nos dão obsessões eventuais no decorrer da vida, o conto “Ânsia Eterna” não tem o clima de terror e horror que “Os Porcos” possui, mas discute de forma bem incisiva a ideia de aparências e julgamento social e é uma abertura amena que engana o leitor ao provocar uma impressão da escrita que no decorrer da coletânea se mostra na verdade muito versátil e diversa. 

Prova disso é o conto “E os cisnes?”, que traz à tona o tema das doenças mentais e destaca numa linha de suspense muito bem conduzida o impacto que internações possuíam na época. É um conto breve, tenso e misterioso que desanda em uma trama forte sobre trauma. Já o conto “A Rosa Branca” dá destaque para as relações familiares instáveis ao contar a história de Inês, uma neta que viveu à sombra da irmã, amada e adorada pela avó, enquanto era bastante desprezada pela figura mais velha. Excluída do amor dessa figura matriarcal incisiva em sua casa, Inês traz consigo as dores familiares tão universais e ainda sob os olhos de uma menina jovem demais para aprender a lidar com a rejeição. 

“Onde se esconderia o grande Deus, divinamente misericordioso, de quem o padre falava na missa do arraial em termos que ela não atingia, mas que a faziam estremecer?”

Uma outra discussão recorrente na coletânea é sobre a ideia de moralidade e religiosade, principalmente no que tange ao comportamento esperado de mulheres da alta sociedade – a velha concepção de pureza feminina, a virgindade sagrada e etc. – e um conto que se destaca nisso é “O Caso de Ruth”, que aborda ainda o tema da violência sexual e o quanto a culpa em cima da mulher era tão pesada que extendia-se até mesmo após sua morte. Cabe ainda destacar a excelente discussão sobre maternidade e culpa atribuída no conto “Pela Pátria”, que apresenta a dor e o luto de D. Catarina, mãe de dois filhos que ela viu serem entregues ao serviço militar e que lamenta a perda que o Estado provoca nas mães ao levar embora seus filhos em nome de lutas vazias. 

Como um todo, Ânsia Eterna é uma coletânea heterogênea, diversa, com histórias realistas e, por vezes, um pouco fantástica, perpassando diferentes temas que explicam muito do Brasil do século XX, ao mesmo tempo que também falam do Brasil do século XXI.

Júlia Lopes de Almeida aborda com cuidado temas sobre o feminino, sobre o amor, sobre luto e destaca sempre o impacto que os preconceitos de classe e gênero impõem nas relações sociais do dia a dia. É uma obra de extrema qualidade, de uma autora brasileira que por muitos anos foi esquecida pela Academia e que é uma recomendação perfeita para quem gosta de tramas curtas e reflexivas que reúnam o melhor da nossa literatura nacional. 

ÂNSIA ETERNA

Autor: Júlia Lopes de Almeida

Editora: Estronho

Ano de publicação: 2021

Publicado originalmente em 1903, essa obra pode surpreender os leitores acostumados os romances mais tradicionais de Júlia. Há neste livro contos que transitam entre a melancolia, a tristeza, insanidade… e aqueles que nos apresentam até mesmo alguns elementos fantásticos, mostrando mais uma vez que a jornalista e escritora Júlia Lopes de Almeida sempre esteve a frente de seu tempo.

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