As Garotas, publicado em 2017 pela Editora Intrínseca, é o romance de estreia da autora americana Emma Cline.

SOBRE O LIVRO

Narrado em dois tempos paralelos, conheceremos a personagem Evie Boyd em dois momentos históricos diferentes: no presente, enquanto a adulta Evie, e no fim dos anos 60, quanto tinha apenas 14 anos. A adulta Evie reflete sobre as ações da sua juventude que a levaram a fazer parte de um culto que pregava a liberdade a todo custo mas que, aos poucos, vai ganhando contornos sombrios até que uma parre de seus membros comete um grande ato de violência que marcaria a sociedade americana por muitas décadas.

“E às vezes a sensação não era de arrependimento. Era de saudade”.

Embora seja uma história claramente inspirada em um caso real, o caso do culto comandado por Charles Manson, esta é claramente uma obra de ficção onde, embora o líder do culto, Russell tenha um forte magnetismo que atrai as pessoas envolvidas no culto, em sua maioria garotas, não é ele que atrai Evie para este mundo de início, mas, sim, Suzanne, uma das mais marcantes garotas que faziam parte de seu culto. É por ela e por todo esse mundo de liberdade, leveza e desprendimento que Evie se encanta no início e é principalmente a partir da relação que se estabelece entre as duas que a narrativa se desenrola.


MINHA OPINIÃO

Pela forma como Cline trabalha o tempo na história, quando o leitor é apresentado à Evie de 14 anos já tem conhecimento de que atos brutais acabaram sendo cometidos pelo culto de Russell e, portanto, não somos exatamente surpreendidos pelos atos cometidos ou até mesmo pelo final. Assim, em vez de ser uma narrativa que gira em torno de descobrirmos o final, como é a opção de grande parte dos livros, aqui temos uma narrativa baseada no fato de que já sabemos o final, o que não sabemos é como Evie chegou até ali e qual foi ou não sua participação nas ações violentas do culto. O que, na minha opinião, é justamente o que faz o livro ser tão interessante e diferente.

Ao acompanharmos Evie, desde as brigas com a mãe e a situação ausente do pai, até o desespero para ser aceita como parte integrante daquele grupo de garotas cool e, aparentemente, livres, temos uma visão bem mais humana e completa de toda a situação que envolvia não apenas a ela, mas a todos que ela conhece no culto. Cada uma das garotas, ganha não só um rosto, mas também uma história, uma personalidade multidimensional, uma vida própria, deixando de ser meras sombras manipuláveis por um homem poderoso (embora exista, claro, uma forte relação de manipulação, abuso e poder entre Russell e as garotas).

“É mais fácil pensar que eu não teria feito nada, como se eu pudesse tê-los detido, a minha presença como uma âncora que manteria Suzanne no mundo humano. Esse era o desejo, a parábola mais convincente. Mas havia outra possibilidade que me acompanhava, persistente e invisível. O bicho-papão debaixo da cama, a serpente ao pé da escada: talvez eu pudesse ter feito algo, também. Talvez pudesse ter sido fácil”.

Essa é uma das questões mais interessantes do livro, na qual reside, na minha opinião, um dos seus maiores trunfos: Evie, mesmo parecendo mais distante do magnetismo de Russell e bem distante de qualquer propensão à violência, admite a possibilidade de que teria feito o mesmo que as outras garotas. Mais do que isso, ela admite que poderia ter sido fácil. Assim, a personagem que tendemos a ver, desde o início, como uma pobre e inocente vítima, ganha contornos complexos; Evie está do lado certo ou do lado errado? Ela é boa, má ou nenhum dos dois?

Não deve passar-nos despercebido, inclusive, o nome da personagem: Evie. Eva. Assim como a personagem bíblica, o tema da influência é bastante forte na história de Evie. Do mesmo modo que existe a questão de que até que ponto Eva é responsável ou é a maior culpada é a influência da serpente, Cline nos faz pensar qual é o nível de responsabilidade de Evie. Mesmo mais nova e inocente, fica claro que há certo nível de escolha nas suas ações. Ela não é apenas influenciada. No entanto, fica claro que, mesmo tantos anos depois, Evie carrega as marcas das escolhas que fez, assim como daquelas que foram feitas por ela.

“Suzanne conseguira a redenção que se seguia a uma sentença, os grupos de estudo da Bíblia, entrevistas no horário nobre da TV e um diploma de faculdade por correspondência. E a mim coube a apagada história de espectadora, uma fugitiva sem um crime, em parte querendo e em parte temendo que alguém viesse à minha procura”.

Esta foi uma leitura fluida, que me desafiou enquanto leitora e, ao mesmo tempo, me manteve presa à história. A edição, especialmente a versão em capa dura, com sua excelente diagramação, tornou a leitura muito fácil e agradável, o que sempre colabora para uma boa experiência de leitura. Acredito ser uma ótima pedida para quem se interessa por histórias que usam fatos históricos para escrever ficção de qualidade, mas, sendo o primeiro livro de uma jovem e promissora autora, considero uma leitura essencial também para qualquer leitor de ficção contemporânea.

AS GAROTAS

Autor: Emma Cline

Editora: Intrínseca

Ano de publicação: 2017

No final da década de 1960, a jovem Evie Boyd vive sozinha com a mãe no norte da Califórnia. Aos quatorze anos, imersa em inúmeras questões de autoaceitação, ela se sente muito desconfortável com o próprio corpo e tem apenas uma pessoa com quem contar: Connie, sua amiga de infância. No início do verão, uma briga faz com que as duas se afastem, e Evie encontra um novo grupo: garotas que demonstram extrema liberdade, usam roupas desleixadas e emanam uma atmosfera de abandono que a deixa fascinada. A jovem logo percebe que já está sob o poder e o domínio de Suzanne, a mais velha do grupo, e acaba entrando em um culto sombrio, liderado pelo carismático Russell Hadrick. O rancho do grupo é um lugar estranho e decadente, mas, aos olhos da adolescente, parece exótico, com uma energia singular. Evie descobre que as garotas cozinham, limpam e prestam até mesmo serviços sexuais para Russell, que proclama um desejo de libertar as pessoas do sistema. Evie quer apenas ser aceita pelos outros integrantes, principalmente por Suzanne. É sua chance de se sentir amada e pertencente a algo. Conforme sua obsessão por Suzanne se intensifica, ela não percebe que se aproxima de uma violência inacreditável. Contada por Evie já adulta e ainda abalada, a narrativa é um impressionante retrato de garotas que se tornam mulheres. Denso e de ritmo surpreendente, o romance de estreia de Emma Cline é escrito com precisão e perspicácia ao construir os perfis psicológicos dos personagens. As garotas aborda mais que uma noite de violência – é sobretudo um relato do mal que causamos a nós mesmos e aos outros na ânsia por pertencimento e aceitação.

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