Lançado pela primeira vez em 1895, “O Bom Crioulo” é escrito por Adolfo Caminha e foi republicado em diferentes edições, incluindo em uma versão digital da Editora Obliq Clássicos.

Sobre o Livro

Integrante do naturalismo literário brasileiro, “Bom-Crioulo” foi um polêmico livro lançado pelo cearense Adolfo Caminha e cuja narrativa apresenta a história de Amaro, homem negro que fugiu da fazenda onde era escravo e após a fuga ingressou como membro da marinha. Vivendo entre viagens e apelidado de “bom-crioulo” pelos demais marinheiros, Amaro acaba encantando-se obsessivamente por Aleixo, grumete recém chegado ao serviço e cuja aparência juvenil e quase feminina provoca em Amaro reações que ele julgava nunca ter sentido antes com mulher nenhuma.

Abordando o envolvimento homoerótico de Amaro e Aleixo, “Bom-Crioulo” foi, na época, um livro considerado imoral por sua temática vista como tabu e, apesar de claramente seu intensão original ser a de depositar o clássico olhar cientifico do naturalismo sobre os determinismos sociais; na discussão literária contemporânea o livro tem sido revisto sob uma ótima “resignificada” de análises e apropriações.

“Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez”

Amaro e Aleixo protagonizam uma inconstante, física e desgraçada jornada que fez do livro um dos nomes clássicos mais a margem do naturalismo nacional e que alimenta reflexões e revisões até os dias de hoje. O que é possível retirar de uma história cuja origem decorre de um momento muito específico da produção de literatura do país? Havia amor entre Amaro e Aleixo? Como olhar um clássico considerando suas problemáticas, mas também suas múltiplas possibilidades de apropriação identitária? São essas algumas das principais reflexões que a tortuosa trama que aproxima e separa Amaro de Aleixo consegue proporcionar ao leitor no decorrer de suas páginas.


Minha Opinião

Acho que preciso começar falando que nunca fui uma leitora muito chegada aos romances naturalistas. Entendo os ideais do movimento e compreendo que boa parte das estratégias partiam de um contexto cientificista específico, que a linguagem mais direta e carregada de descrições muito objetivas e as vezes bem explicitas era parte dos recursos utilizados propositalmente para compor a narrativa dos romances e sei que grandes escritores – como Eça de Queirós, Aluísio Azevedo e Zola – marcaram a geração com suas histórias. Contudo, nunca foram os tipos de livro pelos quais tive mais apego na época da escola e nem durante a faculdade. O próprio Adolfo Caminha foi responsável por um dos maiores traumas literários do meu ensino médio, um dos outros livros dele, “A Normalista” foi aquela leitura que terminei a base do ódio e prometi nunca mais pegar no livro de novo.

Assim, grande foi a minha surpresa quando comecei “Bom-Crioulo” esperando não passar dos 10% e então… já estava na metade do livro. Não entendo ainda o porquê de isso ter acontecido, mas um dos méritos do livro que já posso falar é que os personagens são muito mais fáceis do leitor gostar do que outros personagens de livros como os do Eça ou Zola, por exemplo. Amaro, apesar de ser descrito com a típica narração naturalista que animaliza os personagens humanos e suas ações – Amaro é constantemente colocado como um sujeito grande e bom, porém dado a rompimentos raivosos muito violentos – foi facilmente um personagem que conquista em poucas páginas, principalmente devido a descrição inicial ao narrar a fuga do local onde era mantido como escravo e sua paixão à primeira vista pela liberdade que o mar oferece. Seu interesse por Aleixo, descrito de forma idealizada e típica dos preconceitos da época ao colocar o grumete como “quase feminino” nos traços, é inserido de forma abrupta, mas muito genuína e a forma como Amaro transmite o que sente ao leitor torna o personagem mais crível e real.

Não que em qualquer momento a relação dos dois seja transmitida com o objetivo de ser representativa ou algo parecido. Adolfo Caminha, como um escritor de seu tempo, imerso nos preconceitos homofóbicos de caráter cientifista, via a relação entre dois homens sob a perspectiva patológica e sempre menciona isso no decorrer da trama, frisando na voz dos personagens que “aquilo não era natural”. E, claro, assim como outros livros do naturalismo, a animalização do personagem de Amaro parte também do viés racial preconceituoso da época, que buscavam nos ideais deterministas uma “natureza” tendenciosa a violência e aos atos impensados. Todos esses elementos ficam evidentes na trama e são uma das problemáticas a qual o leitor tem de saber balancear as medidas: não deixa de ser preconceito, assim como não deixa de ser uma produção com os problemas decorrentes de seu contexto histórico igualmente problemático e com bem menos debates do que os de hoje.

“Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda a gente sabia que era o Bom-Crioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha… uma coisa indescritível!”

É sob essa ótima de observar o clássico sob olhos contemporâneos que a discussão de “Bom-Crioulo” se tornou interessante para mim de modo que ultrapassava até mesmo suas páginas. O envolvimento de Amaro e Aleixo encaminha-se para um final trágico, de praxe em romances naturalistas, mas dar uma olhada nas discussões contemporâneas sobre a obra me fez abrir os olhos para a capacidade de ressignificação que a obra pode gerar em leitores contemporâneos – e até mesmo estrangeiros. No artigo “Bom-Crioulo: um romance da literatura gay made in Brazil”, do pesquisador Carlos Eduardo Bezerra, é apresentada uma discussão extremamente produtiva a partir das traduções estrangeiras do livro para outros países e que por vezes chegam a eles em editores conhecidas por publicar histórias LGBTQ+. Bezerra toca no ponto importante de que a narrativa de Caminha “não fugiu totalmente do esquema de medicalização e condenação das personagens homoeróticas, mas a sua particularidade está em ousar numa estrutura narrativa ficcional possível para leitores do final do século XIX no Brasil, entre eles o próprio escritor” (BEZERRA, 2006, p. 96) e que, apesar das discussões sobre a obra terem sim de tocar nos pontos problemáticos que o contexto defendia, é também importante considerar o que historicamente uma história como a de Amaro e Aleixo pode render de discussões sobre a literatura que apresenta personagens marginalizados socialmente.

Nas palavras do pesquisador: “Adolfo Caminha coloca em cena sujeitos considerados marginais, cuja entrada na literatura evidencia a existência deles na sociedade, o que, de algum modo, confronta o status quo e a moral burguesa, muitas vezes presente na constituição do cânone literário” (BEZERRA, 2006, p. 98). Assim, por mais que não haja qualquer intenção de representar o amor entre Amaro e Aleixo de forma a promover a diversidade, algo importante para o espaço literário “Bom-Crioulo” consegue fazer: registrar que a relação deles existe, o que por si só até então não havia sido feito com frequência dentro da literatura de língua portuguesa. O pesquisador ainda encerra promovendo uma das reflexões que mais permaneceu na minha cabeça ao finalizar o livro e voltar ao artigo: “Se atualmente o romance é exemplo de uma possível literatura gay é porque parte dos seus leitores, na língua original ou nas traduções citadas, foi capaz de se reconhecer nesse fato e de se sentir pertencendo a ele. Não se trata, obviamente, de um espelho ou de qualquer outra situação reflexiva; é muito mais um ato de apropriação.” (BEZERRA, 2006, p. 100).

Repensar a obra dentro da discussão contemporânea, analisando seus problemas e seus pontos de ressignificação foi um dos aspectos mais especiais da leitura. Acima das descrições muito explicitas que nunca foram muito do meu gosto pessoal, no livro de Adolfo Caminha consegui gostar de Amaro e Aleixo e desejar fortemente que, se aquela época fosse outra, talvez fosse possível ter um final diferente do que a tragédia reservada a ambos. Além disso, é sempre uma curiosidade a parte ver como que o Brasil daquele período é retratado nos livros: os personagens de Caminha frequentam e andam por espaços onde a burguesia nacional não pisa, promovendo ao leitor uma diversidade de espaços geográficos sociais e políticos muito ampla.

“Ali se achava, ao redor dele, a sublime expressão da liberdade infinita e da soberania absoluta, coisas que seu instinto alcançava muito vagamente através de um nevoeiro de ignorância”

O livro ainda toca na polêmica atuação das figuras de autoridade: a marinha, como uma instituição que em tese deveria ser símbolo de respeito e admiração, aparece no romance como aquela que por vezes sede a violência para manter a ordem e que não tem dos comportamentos mais admiráveis como bem se esperaria de um serviço que deveria ser modelo. Há, claro, muitos pontos incômodos a um leitor dos períodos contemporâneos: a descrição de Amaro é extremamente cruel e recheada do racismo típico da época, as mulheres também são descritas no estilo naturalista de enfatizar o corpo e o comportamento sexual como elos principais da formação de caráter delas, bem como a relação de Amaro e Aleixo decorrem da visão extremamente preconceituosa do período e do estilo de narrativa determinista. Tais pontos são um alerta para quem for pegar a história, é impossível escapar deles dado o estilo do movimento literário em que a obra se encaixa, então é algo com o qual é o leitor já precisa entrar preparado para lidar.

De um modo geral, a leitura de “Bom-Crioulo” é muito rápida, a narrativa curta e objetiva faz com que o livro ande de forma muito coesa e fluída e os personagens são quase todos pré-determinados por suas sinas finais, o que torna um tanto previsível o destino a eles reservado, mas não menos interessante de observar. Mais do que o livro em si, a graça de ler a história vem muito sobre aprender a ver com os olhos de agora algo que foi escrito tanto tempo no passado, quando discussões contemporâneas não sonhavam em aparecer, e observar o que delas pode ser retirado e repensado para discussões atuais. “Bom-Crioulo” certamente não é um livro que vai agradar todos os leitores, mas é uma recomendação muito interessante para quem tiver interesse em conhecer mais do naturalismo brasileiro e quiser repensar essas obras dentro de uma discussão mais atual sobre a produção da literatura e sua relação com a história, seja ela a do passado, seja a nossa.

BOM CRIOULO

Autor: Adolfo Caminha

Editora: Obliq Clássicos

Ano de publicação: 1895

Bom crioulo, de Adolfo Caminha, foi publicado em 1895. Recebido com um escandalizado silêncio pela crítica literária e pelo público da época, aborda assuntos como relacionamentos inter-raciais e homossexualidade em ambiente militar. Narra a história de Amaro, o personagem principal, que é escravo foragido e entra para a Marinha de Guerra, apaixonando-se por um colega de trabalho.

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