Publicado pela Editora Record em 2011, Carvão Animal encerra a trilogia A saga dos brutos, escrita pela autora nacional Ana Paula Maia. Esta trilogia também é composta das duas novelas presentes na obra Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, já resenhada aqui.

*Essa resenha pode conter spoilers dos livros anteriores

SOBRE O LIVRO

Neste livro voltamos 10 anos no tempo, conhecendo eventos que ocorreram uma década antes dos eventos de Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos. Nos vemos tanto diante de personagens já conhecidos, como Edgar Wilson, como somos apresentados a novos homens-bestas, como é o caso de Ernesto Wesley. Nas palavras da própria autora,

“Assim encerra uma saga que teve por fundamento expor como o caráter do ser humano pode ser moldado pelo trabalho que executa, como o meio intervém na construção das identidades e como essas identidades modificam o meio.”

Seguimos de perto as histórias de Ernesto Wesley, um bombeiro que frequentemente se vê diante da possibilidade de ser engolido pelo mesmo fogo do qual busca proteger a população. Em contrapartida, conhecemos Ronivon, que trabalha cremando corpos, corpos esses que, na cidade fictícia de Abalurdes, tem dupla serventia, pois o carvão animal produzido nesse processo é também fonte de energia.


MINHA OPINIÃO

Ao tratar desses dois lados do processo de queima de corpos, o lado que tenta impedi-la, os bombeiros, e o lado que a executa propositalmente, os cremadores, temos um panorama interessante de como o clico da vida funciona na cidade de Abalurdes, pois ali até dos mortos se faz utilidade. Mais do que isso, com o uso que o hospital faz da energia gerada pelo carvão animal, os vivos dependem dos mortos para não se juntarem a eles tão cedo. O que, se pensarmos bem, é uma forma bastante pragmática e utilitarista de lidar com a morte.

“Os mortos do hospital, principalmente os indigentes, são cremados no Colina dos Anjos e seu calor transformado em energia para abastecer os vivos. Os vivos de Abalurdes sabem aproveitar bem os seus mortos”.

Tal relação com a morte marca, naturalmente, o modo como estes personagens lidam com a vida que os esperam fora dos extremos de vida e morte no qual operam. Suas vidas giram em torno da fragilidade da vida e da cotidianidade da morte, o que leva a pensarem na sua própria existência como algo perene, sem importância e que os deixa presos na corda bamba entre o bestial e o humano.

É interessante observarmos também que, através do encontro entre as trajetórias narrativas de Edgar Wilson e Ernesto Wesley, nos vemos diante do momento decisivo em que Edgar decide aceitar o emprego de abatedor de porcos, fato tão determinante para a história que se desenrola em Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos. Isolado, pode ser um momento sem importância. Mas, pensando em A Saga dos Brutos como um todo, é nesse ponto que os elos que unem seus personagens se consolidam.

Em vez da violência provocada que domina as outras duas narrativas desta trilogia, aqui é na própria morte e no processo físico que envolve a carbonização de um corpo que Ana Paula Maia dá voz ao seu horror realista. Mais um vez, nos vemos diante de uma narrativa que prova o quão pior a realidade nua e crua pode ser do que qualquer coisa que poderíamos imaginar. Pessoalmente, acredito que nessa obra temos uma experiência de leitura ainda mais intensa e mais recompensadora para aqueles dispostos a encarar descrições pesadas e personagens mais ainda.

“Enquanto um corpo é carbonizado, as extremidades se contorcem e encolhem. O que já foi humano parece voltar-se para o lado de dentro. A boca escancara e se contrai. Os dentes saltam. O rosto murcha e torna-se um grito suspenso de horror”.

O projeto gráfico desta edição, embora não chame tanto a nossa atenção quanto o de Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, combina com perfeição com seu conteúdo: o domínio das cinzas com uma pequena janela para as chamas responsáveis por devorar corpos humanos e produzir o carvão animal.

CARVÃO ANIMAL

Autor: Ana Paula Maia

Editora: Record

Ano de publicação: 2011

Insólita e provocante. a literatura de Ana Paula Maia pulsa com a intensidade do possível. do real. Suas palavras moldam uma localidade universal. onde os infernos particulares se descortinam nos fragmentos de diálogos. Nas reflexões sobre vida e morte. Amizade e hipocrisia. No olhar mortiço dos homens-besta. sobrecarregados pelo fardo da própria existência. Pelo peso da desesperança. da falta de perspectiva. Seus heróis são trabalhadores sempre à margem da sociedade. presos na ambigüidade das próprias funções. condicionados pelas próprias escolhas. Marginalizados por elas. Ernesto Wesley. Ronivon. Edgar Wilson. Eles estão por toda parte. O que os torna únicos é a abordagem da autora. A capacidade de filtrar cada realidade e exibir. nua e crua. a motivação de personagens amorais. mas quase líricos. Com muito sangue. violência e estilo. Ana Paula Maia lança o olhar ao outro. e extrai. de cada um. sua qualidade mais humana. E assim subverte qualquer atitude condenável em feito redentor. Mas não há luz nesse heroísmo. Também não há trevas. É um momento repleto de cinzas. de um tom intermediário. suspenso no tempo. Uma atmosfera claustrofóbica. que envolve e hipnotiza o leitor. Como um soco no estômago. Carvão Animal nos rouba o ar. Penetra na carne. ossos e tendões. E nos coloca frente a frente com uma realidade muitas vezes despida de dignidade. Uma realidade não calma ou sonolenta. Mas que despedaça e desfigura. Como a morte que ronda esses personagens. É impossível desviar o olhar.

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