Para ler a poesia de Mário de Andrade, convém conhecer o contexto – alguns poetas ficam famosos não apenas pela beleza de seus versos, mas também por sua tremenda importância histórica. Proponho uma viagem no tempo, do tipo que confunde os enredos, mas é essencial para a compreensão do nosso protagonista. Respire fundo, feche os olhos e imagine… Feche os olhos… ou mantenha-os abertos, se for necessário para a leitura deste texto.

Perceba a São Paulo dos anos 1920. Há um otimismo quase palpável em relação ao futuro. O Brasil deixa de ser um país essencialmente agrário para ter fábricas, e bondes, e asfalto, e há dinheiro – ainda proveniente, é verdade, das plantações de café, mas que abre certo espaço para a industrialização. Você, (querido) viajante do tempo, consegue ouvir o barulho dos automóveis? A confusão dos sindicatos? Os múltiplos sotaques, de italianos, alemães e fugitivos das guerras? São Paulo moderniza-se, apesar de certo ranço provinciano. A arte precisa dar-lhe as mãos e pagar os ingressos do cinema.

Sim, a arte. Até então, era moça de família, acadêmica, certinha, de versos metrificados. Mário a quer louca, em desordem, capaz de refletir todo o tumulto dos espaços urbanos. Paulicéia Desvairada, lançado em 1922, é fruto deste ímpeto. Mais tarde, definiu-se que Paulicéia foi o primeiro livro de poesia moderna do Brasil. Justo, justíssimo. Mário estava mudando o curso da história.

Três parágrafos e ainda não citei o nome do livro que me predisponho a resenhar… Chama-se “De Pauliceia Desvairada a Lira Paulistana”, publicado pela Martin Claret, em uma edição linda da vida. A obra reúne boa parte da poesia de Mário, desde o deboche da fase heróica (“Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, (..) o homem-nádegas”) até a melancolia da maturidade (“Cada momento de tua vida é um fim-final”). Encontramos aqui o verso livre e a polifonia poética que Mário adotou e registrou em seu nome: palavras soltas, frases que vibram, ressoam, amontoam-se, que constróem o seu significado na atenção da leitura.

O que mais me encanta em Mário é que a sua poesia não se priva em sujar os pés de lama… A cidade de São Paulo, personagem constante em sua obra, é amor arlequinal, “comoção de minha vida!”. Mas também é bofetada lírica, “a grande boca de mil dentes”. Existe um entusiasmo com a modernidade – o modernismo, bem dito, é a sua resposta estética. Mas os olhos do poeta não ignoram a faceta mais sombria do capitalismo. Mário anda pelas ruas de asfalto e terra batida. E reflete: “a nossa gente vai muito sofrer e tenho o coração inquieto”. A manhã “se desenrola que nem novelo de fofa lã”, mas também ilumina o homem miserável que engole insultos e “a ponta do chicote”. O poeta sonha com “o amor que há de ser tudo” mas reconhece o essencial da “carícia dos pratos”.

“Pra todas as cartas da gente. / Eco mecânico. / De sentimentos rápidos batidos. / Pressa, muita pressa.”

De todas as figuras cheias de cor do modernismo brasileiro, Mário sempre foi a minha predileta. Era, sem dúvida, o poeta que nós precisávamos. Difundiu as idéias das vanguardas européias no Brasil sem esquecer de adaptá-las à ótica local. Valorizou a língua falada, o português brasileiro, os pronomes das ruas. E acima de tudo, usou a sua poesia para refletir sobre o homem e o coletivo, os efeitos da modernização e as injustiças sociais. Influenciou toda uma geração, assumindo as rédeas do modernismo pela força de sua inteligência.

“De Paulicéia Desvairada a Lira Paulistana” é uma obra absolutamente importante, não só para quem gosta de poesia, mas para todos que desejam compreender os tortuosos caminhos da literatura nacional. Leiam com paixão. Afinal, como disse o poeta, “versos não se escrevem para leitura de olhos mudos”.

DE PAULICEIA DESVAIRADA A LIRA PAULISTANA

Autor: Mário de Andrade

Editora: Martin Claret

Ano de publicação: 2017

Neste volume reúnem-se diversas obras em verso que marcaram a carreira de Mário de Andrade, entre elas “Pauliceia desvairada”, “Losango Cáqui”, “Clã do Jabuti”, “Remate de males”, “O carro da miséria”, “A costela do grã cão”, “Livro azul”, “Café” e “Lira paulistana”. Uma edição imperdível que permite-nos compreender melhor a concepção dos modernistas brasileiros.

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