Todo mundo conhece aquela história que começa com “Era uma (duas, três, muitas) vez(es)”, e termina com “… e eles viveram felizes para sempre!”. Problemas se resolvem magicamente, o mundo é governado por reis sábios (ainda que muitas vezes bufões) e os vilões se distinguem claramente em uma multidão, inclusive com suas motivações sempre nítidas e distinguíveis a milhas de distância. Em alguns casos existem animais falantes, em outros são os animais falantes que conduzem a história, e, entre o ‘era uma vez’ e o ‘felizes para sempre’ em algum lugar se aprende uma valiosa lição ou duas sobre a vida.
Esse, como é fácil de assumir pelo que estou dizendo, é o mundo Disney (o que? Achou que eu estava falando de fábulas – só porque é o título dessa resenha?), e, que após anos de imersão muitas vezes se confunde no imaginário popular com as versões originais das histórias dos irmãos Grimm, de Christian Andersen, de Esopo ou as muitas outras inspirações possíveis e imagináveis para o universo de Mickey Mouse.
De fato, há um cânion de diferença entre as histórias originais, algumas bem menos graciosas, com bem mais sangue e violência e eventual canibalismo que a versão que nos foi mais comumente apresentada, ao ponto que muitas das tradicionais fábulas trazem contos bastante perversos e perturbadores (como o conto da princesa Pele de Burro do francês Charles Perrault, ou mesmo a versão original de Pinóquio de Carlo Collodi), e, parte desse cânion se explica por toda uma filosofia que o criador da megacorporação Walt Disney construiu ao redor de seu universo – e que o chileno Ariel Dorfman e o belga Armand Mattelart destrincham em Para Ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo (136 páginas, Editora Paz na Terra, a partir de ‘How to Read Donald Duck’ publicação original de 1976).
Como a dupla destaca, o universo Disney é um mundo assexuado e pueril, em que as virtudes se preservam (e se mostram, de maneiras claras e nítidas, inclusive, através de traços físicos), ao ponto que raramente nas obras da terra do camundongo os personagens tenham pais (muitos padrastos/madrastas, muitos tios/tias, mas pais e mães são quase que uma exceção).
E esse é um ponto que destaco pois é um do fatores mais interessantes do projeto de Bill Willingham, ao desmistificar e separar a ideia dos personagens tradicionais do imaginário popular de suas versões mais famosas, que destaco com a trama do primeiro volume, Fábulas – Lendas no Exílio (132 páginas, Editora Panini, a partir de ‘Fables vol 1 Legends in Exile’, publicação original de 2002), quando o menino Pinóquio destaca, sem qualquer pudor a desgraça de sua condição de menino por quase duzentos anos (afinal, ele ainda garoto queria mais que tudo atingir a puberdade para poder finalmente transar).
A ideia de expectativa e resultado é constantemente questionada durante a série, com papéis que se mudam e/ou invertem (o Lobo Mau é bonzinho, as princesas tradicionais não tem nada de graciosas – Cinderella, por exemplo, é uma espiã que nada deve a James Bond – enquanto o galante Príncipe Encantado é um criminoso e golpista comum), com a noção de as personagens das fábulas são criaturas mágicas e quase imortais vivendo entre nós incautos humanos após uma terrível guerra que se acometeu em seu mundo (que é um universo compartilhado por toda história, conto e fábula já escrito), e nesse primeiro volume a história começa por misturar um clima noir clássico com o detetive Bigby Lobo (isso mesmo, o Lobo Mau é o detetive aqui) não devendo nada ao melhor Phillip Marlowe em um caso que vai se enveredando nas muitas e muitas intrigas de uma comunidade que não é tão funcional e perfeita quando se olha de perto, e, é essa a intenção clara e direta que o autor pretende para apresentar esse mundo dos personagens de contos de fadas fugidios para nosso mundo, através de claras inspirações nos estilos de animações Disney para a composição dos personagens (no belo traço de Lan Medina nesse primeiro volume, mas principalmente na arte de Mark Buckingham nos volumes seguintes, e, claro, na arte espetacular das capas de James Jean), que se contrasta com o sujo e cinza das grandes metrópoles (afinal, um detetive noir precisa de uma grande cidade para explorar e conhecer seu lado mais macabro).
Hoje, talvez as ideias de Willingham não pareçam mais tão originais e novas com seriados como Once Upon A Time ou Grimm contando e recontando suas próprias versões de fábulas e personagens do imaginário popular, e, bem da verdade por mais recente que esse primeiro volume seja, nele padece de uma datação histórica em seu início do século XXI/fim do século XX, ainda mais sem a ideia do sucesso e longevidade que alcançaria (150 edições, duas séries derivadas, com Jack of Fables e The Fairest e uma bem sucedida versão em videogames com The Wolf Among Us), mas as provocações e a qualidade da trama persistem. Não só isso, afinal Willingham fez muito de sua lição de casa e não apenas as versões tradicionais e mais famosas dão as caras, e é bem interessante a forma como o autor usa para apresentar como os personagens fictícios se encaixariam e/ou se disfarçariam para viver no mundo moderno.
Vale muito a pena dar uma conferida na série. Se não pelo todo (há uma queda brutal na qualidade depois da conclusão da trama principal que é a longeva guerra com o ‘Adversário’), pelo menos pelos primeiros e brilhantes volumes, para sair um pouco da zona de conforto sobre esses personagens que conhecemos tanto e, de fato, tão pouco.