Lançado originalmente em 1984, “O Amante” é um romance ficcional com traços autobiográficos da escritora Marguerite Duras, publicado no Brasil pela editora Planeta de Livros sob o selo Tusquets.

Sobre o Livro
Intercalando passado, presente e futuro de modo contínuo, “O Amante” apresenta a trama de vida de uma jovem e, ao mesmo tempo, de uma senhora, que recupera memórias de quando, aos 15 anos, envolveu-se em um relacionamento com um homem chinês rico em meio ao período politicamente conturbado dos últimos anos do imperialismo francês no Vietnã.
“Muito cedo foi tarde demais em minha vida. Aos dezoito anos, já era tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos, meu rosto tomou um rumo imprevisto. Aos dezoito, envelheci. Não sei se isso acontece com todo mundo, nunca perguntei. Acho que me falaram dessa arremetida do tempo que às vezes nos atinge quando atravessamos as idades mais jovens, as mais celebradas da vida. Esse envelhecimento foi brutal.”
Narrando o início da sua vida sexual e, principalmente, os problemas internos dentro de seus relacionamentos familiares com a mãe e os irmãos, “O Amante” destaca os dramas de amadurecimento que em certa medida coincidem com a história da própria autora e toca em temas sobre a descoberta feminina da sedução e do prazer, as mágoas e dores familiares que afetam a vida de uma família em decadência econômica e apresenta de pano de fundo o fim de um período histórico cercado de preconceitos sociais.
Minha Opinião
Escrito de forma única, “O Amante” é antes um livro sobre relações familiares do que sobre uma trama amorosa confusa, desconjuntada, prazerosa e dolorosa. Apesar do destaque que o “homem chinês” possui para a narradora protagonista e mesmo com sua importância catártica para início e para fim da trama, é na figura da mãe e dos irmãos que a narradora mais despeja suas dores, seu amor e sua ficcionalização por meio da memória. Bastante metalinguístico por possuir uma personagem que desde o começo afirma voltar ao passado e a dedicar-se a escrita, o livro é encadeado de forma contínua, narrando os fatos fora de uma ordem cronológica, seguindo um aparente fluxo de pensamento desordenado que combina perfeitamente com o âmbito reflexivo e introspectivo da história.
Localizado historicamente entre um passado, presente e futuro que tem como cenários o antes, durante e depois da saída do imperialismo francês no Vietnã, o livro apresenta também bastante pano de fundo do contexto histórico do período, incluindo as dinâmicas sociais desiguais e recheadas de preconceitos. Envolvendo-se em um romance sexual distorcido com um homem chinês rico, parte do que faz o relacionamento dos dois ser tão instável e fadado ao fracasso é justamente a hesitação que ambas as famílias possuem: o pai do homem chinês não quer que o filho se envolva seriamente com a “pequena prostituta branca de Sadec” e a própria narradora tem pensamentos bastante conservadores sobre casar com esse homem. É o mundo de distâncias entre eles que os aproxima nesse relacionamento confuso e tortuoso e é também o que os separa e torna o final da história algo tão emocional devido a revelação que a narradora chega já muitos anos à frente na sua vida.
“Eu tinha medo de mim, tinha medo de Deus. De dia, eu tinha menos medo e a morte parecia menos pesada. Mas ela não me deixava. Eu queria matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, ter razão contra ele uma vez, pelo menos uma única vez, e vê-lo morrer. Era para retirar da frente de minha mãe o objeto de seu amor, esse filho, puni-la por amá-lo tanto, tão mal, e, sobretudo, para salvar meu irmão mais moço, achava eu, meu irmãozinho, minha criança, da vida vivida por esse irmão mais velho sobre a sua, desse véu negro sobre o dia, dessa lei representada por ele, decretada por ele, um ser humano, e que era uma lei animal, e que a cada instante de cada dia disseminava o medo na vida de meu irmão pequeno, medo que certa vez atingiu seu coração e o levou à morte.”

O livro também é essencialmente imagético, com trechos inteiros tão bem descritos em termos de cenários que quase parecem fotografias em palavras. É curioso essa atenção nos detalhes quando “O Amante” é uma trama essencialmente sobre sentimentos e reflexões internas, mas a habilidade de escrita entre cenários e tempos distintos é o que mais dá o tom fluído da narrativa e permite que as constantes mudanças entre passado, presente e futuro sejam facilmente imersivas. E em termos de temáticas, o livro não decepciona: não apenas as problemáticas da iniciação sexual são um destaque muito bem pautado com maturidade e com as concessões do contexto histórico que fazem-se necessárias numa trama que envolve também uma parte autobiográfica da vida de sua autora, como também estão presentes os temas que mais despertam a atenção do leitor: a relação entre mãe e filha, assim como a relação da protagonista com seus irmãos.
Entre amor, rancor e muitas mágoas, o livro concede um relato bastante realístico de viver em família quando tudo está decaindo financeiramente e quando o amor e o ódio andam lado a lado dentro das dinâmicas interpessoais. Com os irmãos, a narradora ora os ama, ora os odeia e principalmente a figura do irmão mais velho assume um papel de algoz na sua vida por ter tirado dela e do irmão mais novo a atenção e a dedicação sem limites que a figura materna dedicou em exclusividade para ele. A mãe é parte central da vida da narradora e são os silêncios e os olhares de julgamento entre elas que definem a instabilidade dessa dinâmica entre mãe e filha que se amam, mas também se detestam na mesma proporção.
De tamanho curto, mas com muito a dizer em seus influxos reflexivos que brincam com a ‘desordenação’ das nossas memórias, “O Amante” é um livro maduro, que aborda temas complexos sobre crescimento, relações familiares e amores fracassados e é escrito de modo único, discutindo ‘metalinguisticamente’ sobre produção criativa e a escrita como modo de exorcizar nossas dores. É um livro recomendado para quem tem interesse em dramas familiares e narrativas que prezam pelo livre fluxo de consciência.


O AMANTE
Autor: Marguerite Duras
Tradução: Denise Bottmann
Editora: Planeta (Selo TusQuets)
Ano de publicação: 2020
Prêmio Goncourt em 1984, com mais de 2 milhões e meio de exemplares vendidos apenas na França, este romance autobiográfico acompanha a tumultuada história de amor entre uma jovem francesa e um rico comerciante chinês na Indochina pré-guerra. Com uma prosa intimista e certeira, Duras evoca a vida nas margens de Saigon nos últimos dias do império colonial da França e relembra não só sua experiência, mas também os relacionamentos que separaram sua família e que, prematuramente, gravaram em seu rosto as marcas implacáveis da maturidade.