Lançado pela primeira vez em 1960, Quarto de Despejo foi o livro de estreia de Carolina Maria de Jesus e recentemente foi relançado em uma nova edição pela editora Ática.

Sobre o Livro

Quarto de Despejo” reúne as entradas de diário escritas por Carolina Maria de Jesus durante os anos de 1955 até 1960. Catadora de papel e moradora da favela do Canindé, no Rio de Janeiro, Carolina usa as páginas de seu diário para relatar o dia a dia da sua vida na favela, misturando elementos da sua rotina com suas reflexões sobre a situação social em que ela se encontra, mesclando isso com a descrição de seus sonhos, dores e medos.

Com sua experiência, a escritora cresce no cenário literário nacional com um novo tipo de narrativa, na qual a figura dos grupos marginalizados é finalmente apresentada por alguém que está dentro desse grupo e não mais como sendo uma visão de autores que estão fora desse local social.

“Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade com o povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, dor e a aflição do pobre”

Em suas entradas, Carolina não apenas mostra sua realidade enquanto moradora de um local assombrado pela fome e miséria, mas também revela suas facetas como mãe, escritora, leitora e individuo, proporcionando um rico quadro de perspectivas emocionais, sociais e políticas, tudo isso com uma escrita simples, até mesmo “errada” quando colocada em parâmetro com a norma padrão da língua, mas que ainda conta uma história que ergue perguntas. Afinal, o que tem de tão diferente no relato de Carolina que a tornou uma escritora tão necessária para a literatura brasileira? O que seria exatamente esse quarto de despejo que dá nome ao título de seu livro? E quem é a mulher por trás de sua narração e descrição de uma realidade que é tão esquecida pelo resto país?


Minha Opinião

Quarto de Despejo é talvez um dos diários mais sinceros e impactantes que tive a oportunidade de ler. Saber que sua influência no cenário literário nacional foi sentida tanto em âmbito comercial quanto em âmbito cultural é reconfortante. Normalmente, autores como Carolina Maria de Jesus, oriundos de núcleos marginalizados da sociedade brasileira, são constantemente deixados para trás em um mercado que não os considera como “literatura de verdade”.

Foi um fato extraordinário e de grande relevância cultural que Quarto de Despejo conseguisse o êxito em não apenas ter um ótimo número de vendas para a sua época, como também ter vencido a briga por espaço dentro das prateleiras de escolas, universidades e premiações, sendo hoje considerado um importante livro para o campo literário contemporâneo.

“Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.”

Simples, direto e fácil de ler, Quarto de Despejo encanta por ser real em cada uma das suas descrições e por transcrever com tanta realidade a vida de Carolina, bem como seus sentimentos, medos, sonhos e emoções. Mais do que mostrar ao leitor a realidade de um mundo que é constantemente esquecido – referida pela própria autora como “quarto de despejo”, a favela, sua rotina e seus moradores não passam de meros fantasmas na perspectiva social do Brasil, sendo mencionados apenas em âmbito de noticiários policiais e com representações estigmatizadas nas mídias -, o diário de Carolina é também o relato de uma mulher que exerce distintos papeis dentro de sua comunidade.

Como mãe, Carolina mostra sua faceta de preocupação com a segurança dos filhos, com o que fazer quanto a comida do dia que precisa ser colocada na mesa para eles, com o temor pelo que o futuro reserva. A autora consegue facilmente passar todas essas emoções para quem a acompanha, mostrando de forma direta, mas carregada de emoção, o quanto ela gostaria de fazer mais pelas crianças do que ela pode.

Carolina também é escritora e leitora em seu diário. Por diversas entradas ela afirma veementemente o quanto a escrita funciona quase como um processo terapêutico para ela, pois fornece pequenos momentos de felicidade em meio aos períodos caóticos que ela vive. Sua relação com os livros também é bastante marcada, pois a autora sempre referencia alguma obra famosa, seja por metáfora ou analogia, além de comentar várias vezes o quanto ela não consegue dormir sem ler antes.

Ter essa perspectiva de alguém que usava as palavras como refúgio e como arma para tornar sua voz visível traz inúmeras reflexões para quem acompanha a leitura de seus escritos, afinal, a função da literatura torna-se algo diferente quando vemos o que ela pode fazer para alguém que está inserido numa condição social vulnerável. Entrar em contato com esses debates sobre o papel da arte da representatividade cultural na vida econômica e social de alguém foi um dos pontos mais tocantes da leitura do diário. Não é como se as palavras conseguissem salvar o mundo, mas quando lemos diários como os de Carolina, é inevitável pensar que elas ao menos podem torna-lo melhor.

“Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro, que reluz na luz do sol, que as janelas são de prata e as luzes de brilhante, que a minha vista circula no jardim e contempla as flores de toda a qualidade, é preciso criar esse ambiente de fantasia para esquecer que estou na favela. As horas que estou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários”

Quarto de Despejo não possui uma escrita rebuscada ou difícil, não foi preciso grandes artifícios linguísticos para fazer da escrita de Carolina algo único e marcante por si. Carolina é uma escritora acima de tudo e, apesar de simples, o modo como ela utiliza a linguagem ao seu favor para contar uma história, para criar metáforas, para refutar poetas que ela costuma ler ou mesmo para provocar uma reflexão em quem a acompanha, faz do diário dela a prova de que não é preciso norma culta ou conhecimento acadêmico para que alguém seja bom na arte que faz. Como diria Emicida: “uma frase bonita, mesmo que em grafia errada, ainda é uma frase bonita”. E é isso que Carolina faz em seu texto, de forma simples, até errada, ela faz de seus diários um conjunto literário completo.

Tocante, real e necessário, Quarto de Despejo é daqueles livros que entrariam na lista de “o que todo mundo deveria ler um dia”, mas ele é ainda mais especial para leitores brasileiros que não tem costume de ler obras nacionais. Um diário talvez seja estranho para começar a adentrar na literatura nacional, mas Carolina faz de seus escritos a porta de entrada perfeita para quem quer ver um Brasil que quase sempre é deixado de fora dos retratos. Se você gosta de narrativas que são fortes em mensagem e importantes em impacto sociocultural, se aprecia a literatura nacional ou deseja conhece-la melhor, Quarto de Despejo é um livro que não vai apenas te agradar, como também vai surpreender e superar suas expectativas.

QUARTO DE DESPEJO

Autor: Carolina Maria de Jesusr

Editora: Ática

Ano de publicação: 1960

O diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus deu origem à este livro, que relata o cotidiano triste e cruel da vida na favela. A linguagem simples, mas contundente, comove o leitor pelo realismo e pelo olhar sensível na hora de contar o que viu, viveu e sentiu nos anos em que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com três filhos

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