Lançado originalmente em 1859, Úrsula é um romance ultrarromântico abolicionista escrito pela maranhense Maria Firmina dos Reis e publicado em diferentes edições, sendo uma delas a da Companhia das Letras pelo selo Penguin.

Sobre o Livro

Redescoberto em 1970, após anos de esquecimento histórico-literário, Úrsula é um romance ultrarromântico abolicionista que foi publicado em 1859 e trazia como trama principal a história de Tancredo e Úrsula, dois jovens traumatizados por problemas em seu passado, mas que por causa de um acidente sofrido por Tancredo, se conhecem e ficam perdidamente apaixonados um pelo outro. Porém, intervenções de uma figura grotesca da família de Úrsula vão atormentar o romance dos dois e fazer de tudo para impedir seu final feliz.

Em paralelo ao angustiante amor de Úrsula e Tancredo, o romance acompanha também a narrativa e os sonhos de Túlio e Velha Susana, dois escravos da casa dos pais de Úrsula que, apesar de secundários, tem um destaque inédito na narrativa literária brasileira, pois, além de terem a sua causa representada pelas suas vozes, apresentam também um caráter relevante na trama, tendo direito a narração própria e espaço para falar de seus medos e sonhos.

“E sabeis vós o que é a vida na prisão? Oh! É um tormento amargo, que mata o corpo, e embrutece o espírito! É morrer mil vezes sem encontrar nunca a paz da sepultura! É um sono doloroso e triste do qual o infeliz só vai despertar na eternidade!”

Como um dos primeiros romances escritos por uma mulher no Brasil, Úrsula contém tópicos que misturam a causa pelo fim da escravidão com tópicos sobre amor, obsessão, rancor e medo. Em meio a personagens tão fortemente marcados por suas emoções, Úrsula transmite uma série de questionamento ao leitor: afinal, quão longe alguém pode ir por uma paixão? Quão cruel pode ser um homem que não teve aquilo que desejava? Quais as dores que estão guardadas no coração de pessoas cuja a liberdade foi tão duramente arrancada delas? E o que se pode fazer para que essa liberdade seja ressarcida? É em meio a essas perguntas que Maria Firmina dos Reis apresenta sua Úrsula de forma inédita aos leitores brasileiros.


Minha Opinião

Maria Firmina dos Reis conseguiu me conquistar já na sua apresentação do livro, quando em poucas palavras, conseguiu – com ironia ou não – delinear o cenário literário em que ela estava escrevendo e no qual pretendia publicar. De forma genuína, Maria Firmina inicia sua apresentação com um pedido de desculpas por ousar publicar um romance, ao mesmo tempo que justifica que, tal como uma mãe enaltece seu filho, ela, mesmo consciente das adversidades e negativas, não vai desistir de publicar sua Úrsula.

Em poucas frases, tem-se o contexto no qual a maranhense escreve: como uma mulher negra, filha ilegítima, nordestina e sem pertencer a uma classe alta, Maria Firmina dos Reis jamais seria bem recebida num mundo onde as publicações são em maioria masculinas, brancas e do sudeste. Muito menor seria sua acolhida diante do teor de seu livro: um romance, gênero que era inferiorizado e menosprezado por excesso de sentimentalismo – constantemente atribuído as mulheres por conta do estereótipo das mulheres como emocionais – e, além de tudo, um romance abolicionista, que dava destaque de forma inédita a personagens escravizados, como Túlio e a Velha Susana, que possuem narração própria, não são animalizados ou transformados no estereótipo de “alma branca” ou “bom selvagem” e que falam com propriedade, sinceridade e com muita emoção sobre a África e o pesadelo da escravidão.

“Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofado de outros, e ainda assim o dou a lume. […] Deixai, pois, que a minha ÚRSULA, tímida e acanhada, sem dotes da natureza, nem enfeites e louçanias da arte, caminhe entre vós.”

Nessa conjuntura, era quase esperado que o tempo acabaria por apagar da memória dos brasileiros o livro de Úrsula e as suas execuções históricas. Professora, poeta e compositora de hinos sobre a abolição, Maria Firmina dos Reis faleceu esquecida, sua história reduzida a uma cópia solitária de Úrsula e os seus escritos foram perdidos por conta de um assalto pelo qual passou sua família. Foi apenas em 1970 que o pesquisador Horácio de Almeida descobriu uma cópia de Úrsula em uma remessa de livros antigos e entendeu que tinha em mãos um exemplar do acreditava-se até então ser o primeiro romance publicado por uma mulher no Brasil e que é ainda hoje o primeiro romance da literatura afro-brasileira. Depois de redescoberta, Úrsula e Maria Firmina foram pouco a pouco reconquistando o espaço que lhes havia sido negado por tanto tempo, de modo que, hoje, cada vez mais estudos acadêmicos são feitos sobre o romance e sobre a autora. E, seu livro, que antes só tinha uma única edição conservada pelo tempo, agora possui inúmeras cópias de diversas editoras estando acessível para leitores de todo o país.

É por essa razão que Maria Firmina dos Reis conseguiu me conquistar já no começo de suas páginas. Em poucos parágrafos, já era possível conhecer uma autora que já antevia as críticas que sofreria por parte da comunidade literária e mesmo assim não desistiu de conquistar seu espaço, buscando sozinha os meios para que seu livro fosse publicado. Tal admiração continua nas páginas que se seguem, pois apesar de ter alguns clichês de romance ultrarromântico que são um pouco irritantes após tantas leituras desse tipo de narrativa, Úrsula ainda é único, bem escrito e com personagens cativantes mesmo que com personalidades unidimensionais.

Sensível em escrita e sagaz ao tratar de temáticas pesadas, Maria Firmina constrói Úrsula para ser a típica heroína de romances ultrarromânticos: virginal, pura e inocente, Úrsula é a mocinha que sacrifica sua felicidade em nome da mãe e do homem amado. Apesar de já não ser mais uma protagonista que encantaria leitores contemporâneos, ela ainda é uma personagem com quem aprendemos e por quem tememos, pois ao redor dela há uma ótima discussão sobre relacionamentos abusivos que culminam em uma perseguição assustadora por parte do vilão da trama. O comendador, que possui uma relação tensa com a família da menina há anos – sendo o principal suspeito por ter condenado a vida dos pais dela quando mais novos – apaixona-se perdidamente por ela e faz um verdadeiro inferno na terra para ter ela a todo custo. É em sua figura cruel, sádica e egoísta que Maria Firmina apresenta boa parte dos atos vis que os senhores de terra infligiam aos escravizados e mistura isso com a obsessão dele por Úrsula, o que faz o leitor temer pela segurança da menina.

“Para que a matastes? Não era ela tão inocente e tão bela? A dor do seu coração feriu o meu, e o seu sangue tingiu-me os vestidos. Esse ato inútil crueldade faz-me aborrecer-vos.”

Em Tancredo, o mocinho da trama, temos os familiares estereótipos do protagonista nobre e atormentado por um passado triste, mas mesmo em meio ao clichê, Maria Firmina consegue produzir um personagem que não é apenas um eco vazio de discursos para torna-lo bonzinho. Em momento algum Tancredo toma a narrativa abolicionista como se fosse sua, deixando para Túlio, seu amigo na trama, todas as discussões sobre o assunto, falando apenas para ressoar e apoiar o que ele diz. O amor de Tancredo por Úrsula também é colocado em oposição ao que a obsessão do comendador significada, pois enquanto um é baseado em posse e luxúria, o amor de Tancredo é colocado no paralelo da pureza e da admiração.

Úrsula e Tancredo constituem o pano de fundo do romance, seus passados colidindo e sustentando a trama em meio as perseguições do vilão, enquanto que ao redor deles e por entre as linhas, Maria Firmina cria uma inovadora narrativa de personagens negros afrodescendentes que podem conversar sobre seus sonhos, medos, desejos e falar por si na luta por uma liberdade que lhes foi negada. É em Velha Susana que Maria Firmina apresenta a história de uma mulher que já conheceu a liberdade e que tinha uma vida inteira para viver antes de ser arrastada para um país no qual foi submetida a torturas, agressões e a privação total de sua liberdade. Velha Susana é a voz de quem já conheceu o que era ser livre e guarda mágoa por perder sua liberdade por conta da ganancia de um povo.

“Liberdade… Ah! Eu a gozei na minha mocidade! […] E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!”

Em Túlio, Maria Firmina cria um personagem masculino sincero, humano, que teme o que pode ser feito contra ele na condição de escravo na qual ele encontra-se, mas que não deixa de querer sonhar com um mundo em que ele pode ser livre. Túlio possui narrações próprias, nas quais emociona o leitor por sua sensibilidade e suas reflexões tão cuidadosamente criadas pela autora. É um trabalho impressionante de construção de um personagem, e é ainda mais admirável pensar que Maria Firmina fez isso de forma sútil, mas certeira, afinal ela não podia ser completamente direta em suas intenções de defender a abolição, mas ela também não se omitiu.

Úrsula ainda é um romance ultrarromântico, e os clichês do gênero não deixam de aparecer: narrações exageradas, os famosos rompantes de “doentes de amor”, os personagens com pouquíssimas características de personalidade para além do bem e do mal. Porém, talvez por ter uma escritora, ponto inédito em um mundo de livros desse gênero escrito por homens, Úrsula ainda consegue superar os clichês e entregar um romance sincero, sensível e certeiro, com críticas claras as condições degradantes da escravidão e com um final que respeita seu propósito de ensinamento e sua tradição no romance da famigerada época do “mal do século”.

Desse modo, Úrsula é a recomendação perfeita para quem deseja conhecer mais da história literária nacional, pois como o primeiro livro da literatura afro-brasileira e um dos primeiros romances escritor por uma mulher, Úrsula carrega uma história já na sua simples existência. O livro também é a indicação perfeita para quem gosta de boas e intensas histórias de amor –  afinal, é esse o pano de fundo da narrativa – mescladas com discussões sociais importantes que foram marcos para a literatura nacional.

ÚRSULA

Autor: Maria Firmina dos Reis

Editora: Penguin

Ano de publicação: 1859

Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis compõe Úrsula, um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina, em 1859. Por dar voz e agência a personagens escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema que não lhes impõe limites. Com rica introdução e contextualização histórica, esta edição de Úrsula celebra uma das autoras mais importantes da literatura nacional e conta com estabelecimento de texto e introdução de Maria Helena Pereira Toledo Machado e cronologia de Flávio Gomes.

Relacionados

Destaques

Insta
gram

[jr_instagram id='3']

Parceiros