Lançado originalmente em 1938, Vidas Secas é um romance escrito por Graciliano Ramos e relançado pela editora Record em sua 117° edição no ano de 2012.

Sobre o Livro

Considerado um dos mais importantes romances da Geração de 30 do modernismo brasileiro, Vidas Secas apresenta a história de Fabiano e Sinhá Vitória na companhia de seus dois filhos e da cachorrinha Baleia. Retirantes da seca, a família inicia a narrativa fugindo das consequências que a seca provocou na fazenda anterior em que eles viviam e segue em busca de abrigo, emprego e comida, encontrando assim uma casa abandonada na qual eles param para descansar da longa viagem e percebem que há chance de a chuva voltar a cair em breve.

“O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava. Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando.”

Quando o período de chuvas retorna, a família descobre que a casa que encontraram possuía dono e, para não serem expulsos, aceitam trabalhar cuidando do gado do fazendeiro. Assumindo o papel de vaqueiro, Fabiano e Sinhá Vitória enfrentam o outro grande vilão de sua história: a sociedade que os cerca e que não fornece a eles os meios necessários para se relacionar com ela, gerando situações de abuso de poder, rebaixamento e falta de comunicação entre eles e as figuras de autoridade ao seu redor. Sofrendo de injustiças, a família resguarda seus sonhos sem conseguir comunica-los em voz alta e enfrenta a opressão social e econômica imposta a eles ao mesmo tempo que constantemente pensam no medo do momento em que a seca irá retornar. Como erguer-se e clamar por justiça quando não foram dados a eles a chance de saber se defender em meio a figuras ditas de autoridade que tomam dinheiro, esperanças e qualquer chance de ascensão?


Minha Opinião

É um pouco complicado abordar Vidas Secas como resenha quando se tem em mente que o livro de Graciliano Ramos é considerado como um grande clássico brasileiro. Publicado durante a chamada segunda fase do modernismo brasileiro, os elementos que constroem o romance destacam a abordagem social e engajada que os romances da Geração de 30 quase sempre evocavam. Denunciando a situação de miséria e de opressão causada pela seca no sertão nordestino, Graciliano conduz sua narrativa em torno de uma família que está constantemente isolada socialmente, tanto por falta de habilidade em se comunicar com os demais, quanto pela própria sociedade externa que não permite qualquer abertura que dê à Fabiano, Vitória e as crianças a chance de se comunicarem em igualdade com os demais.

Isolados e incomunicáveis até uns com os outros, a família só parece dar-se bem em torno de seu próprio núcleo e em consonância com a cachorrinha Baleia, humanizada diante do retrato animalesco dos humanos ao seu redor. Consciente de que essa era a principal narrativa do romance, não tinha em mente quais perspectivas seriam possíveis de encontrar na história além de ler o livro como uma história importante para a literatura nacional. Foi nesse ponto que Vidas Secas me surpreendeu: eu sabia o que esperar da história, só não tinha consciência do quão triste seria ler cada um desses capítulos. O modo aparentemente impessoal com que Graciliano Ramos narra a vida de Fabiano e Sinhá Vitória, sempre soando objetivo em suas descrições, esconde em cada uma das frases e pensamentos dos personagens uma emoção cruel de injustiça que comove qualquer leitor que abrir as páginas do livro. É impossível não sentir raiva, frustração e tristeza a cada momento em que as situações colocam os personagens como menores, tira deles algo que os faz feliz ou interrompe o caminho de seus sonhos. Talvez um dos episódios mais marcantes e simbólicos da sensação de impotência provocada no leitor seja a presença do chamado Soldado Amarelo, um policial que injustamente coloca Fabiano na cadeia após uma discussão claramente tendenciosa e que a partir de então passa a atormentar as memórias do personagem que fica abismado e frustrado com a sua própria impotência.

“Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo”.

Diminuindo a si mesmo diante do policial e reconhecendo sua própria falta de habilidade para se expressar com clareza, Fabiano ora sente raiva pelo o que ocorreu e ora se conforma, o que demonstra a extensão de como ele está constantemente se inferiorizando diante dos personagens que denotam alguma figura de autoridade. Tanto que em uma das poucas oportunidades que Fabiano tem de revidar o que ocorreu, ele desiste sob a luz do pensamento de que “Governo é Governo”, essa talvez sendo uma das mais impactantes frases do livro e que evidenciam ao leitor a crítica que Graciliano Ramos mais queria reforçar: há um sistema de poder que impede até mesmo que Fabiano se reconheça como alguém que merece justiça e respeito.

Os demais personagens também elucidam esse desnivelamento, a exemplo de Sinhá Vitória, cujo sonho era possuir uma cama de verdade na qual dormir, algo tão simples que é comovente e revoltante pensar que ela não podia conquistar isso. Além disso, a personagem por diversas vezes tenta encaixar-se socialmente com os demais, usando saltos altos para ir a festa na cidade vizinha, mas até isso é considerado desengonçado, reforçando o quão de fora ela e os filhos estão perto dos demais. Excluídos e sem conseguir comunicar-se, cada vez mais a família é roubada em situações mínimas, como pagar as contas com o fazendeiro para quem trabalham, que sempre inventa uma nova taxa que tira mais dinheiro deles.

Nas crianças, as quais não possuem nome, chamadas apenas de Menino mais velho e Menino mais novo, vemos da perspectiva infantil como que eles interpretam a situação da família. Apegados a cachorrinha Baleia, com quem brincam e que consideram como outro membro da família, os dois irmãos possuem pensamentos e sonhos que desejam explicar em voz alta, explanar com mais afinco, mas a falta de comunicação entre os pais e o pouco contato que eles têm com os demais graças à exclusão, faz com que eles dois também não consigam comunicar-se com eficácia. O menino mais novo tem uma grande admiração por Fabiano, visualizando o pai como um grande vaqueiro pelo qual ele sente medo, mas também vê como herói, porém, sem meios de comunicar sua admiração, ele acaba sendo mal interpretado pelo próprio pai e resguardando para si e para a cachorra Baleia seus pensamentos. O Menino Mais Velho possui dúvidas sobre questões como o que seria o inferno que uma vizinha deles comentou, mas nenhuma de suas dúvidas é sanada já que a família não sabe como abordar e conversar sobre o assunto.

E apesar da dificuldade em dialogar e das confusões de intenção que cada membro da família registra sobre os sentimentos do outro, um dos elementos mais comoventes da história é justamente o quão próximos e unidos eles são como núcleo. Excluídos do meio social, é entre o centro familiar que cada um encontra-se mais confortável e é ao mesmo tempo bonito e triste ver como os laços da necessidade de sobrevivência foram criados entre eles. Apesar de todo o contexto cruel em torno deles, Fabiano constantemente pensa em Sinhá Vitória como aquela com a qual ele pode contar e para quem ele quer voltar quando fica preso na cadeia. Os meninos também sentem-se mais confortáveis ao lado dos pais e Sinhá Vitória pensa com um pouco de esperança acerca do futuro dos dois, ambicionando coloca-los numa escola um dia. Mesmo que eles não dialoguem com frequência, há amor entre essas pessoas que só conseguem ser compreendidas minimante quando estão juntas e a prova dessa relação entre eles é vista sob os olhos da cachorrinha Baleia. Pensante, viva e descritiva, Baleia é quem observa os humanos ao seu redor e pensa neles como uma família de fato. É ela que mostra o quanto a humanidade desses personagens, apesar de animalizada como recurso estrutural, ainda está presente. Baleia, humanizada em si mesma, é um outro membro da família justamente por causa do quão forte são os laços entre todos eles.

“Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro.”

Falar da cachorrinha Baleia é talvez um dos pontos mais tristes da história, uma vez que justamente por simbolizar essa humanidade familiar, o capítulo intitulado com seu nome é um dos que mais provoca tristeza em qualquer um que o leia. Pesado, injusto e cruel, o capitulo não apenas mostra a humanidade da cachorrinha, como também a humanidade dos personagens humanos, que sentem por Baleia a tristeza e o pesar que pareciam não sentir com tanta intensidade até então. É de fato uma das passagens mais tristes de um livro que já li e por si só justificaria o peso dessa narrativa.

Composto dentro do período do modernismo, Vidas Secas é construído como denúncia da realidade de injustiça a qual pessoas são submetidas por uma sociedade que se aproveita da condição delas para tirar-lhes algo, tanto quanto também mostra a aspereza da vida que é marcada pela seca. Considerado um dos maiores romances brasileiros de todos os tempos, Vidas Secas é uma narrativa que merece ser lida para além do sentimento de obrigação que é colocado em leituras voltadas para o vestibular e para provas, é uma obra que comove, entristece e mostra uma realidade que não está tão distante assim quanto achamos que deveria.

VIDAS SECAS

Autor: Graciliano Ramos

Editora: Record

Ano de publicação: 2012

Vidas secas, lançado originalmente em 1938, é o romance em que mestre Graciliano ― tão meticuloso que chegava a comparecer à gráfica no momento em que o livro entrava no prelo, para checar se a revisão não haveria interferido em seu texto ― alcança o máximo da expressão que vinha buscando em sua prosa. O que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro.

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