Publicado originalmente em 1867, “O Abismo” é um romance com traços de texto teatral escrito por Charles Dickens e Wilkie Collins publicado no Brasil em 2019 pela Editora Nova Fronteira por meio do selo Biblioteca Áurea.

Sobre o Livro

Lançado como texto teatral e também como prosa romântica, “O Abismo” reúne a escrita policial de Wilkie Collins com a produção romântica de Charles Dickens para contar a história de Walter Wilding, um rico comerciante que após a morte da mãe descobre que possivelmente foi adotado erroneamente no lugar do verdadeiro filho perdido dessa família tão bem conceituada socialmente. 

Qual é o sino mais triste de todos, o menos barulhento, porém o que mais depressa chega ao nosso ouvido? Atrasou-se tanto nesta noite que ainda se ouvem as suas vibrações após se extinguirem no ar todos os outros sons – é o sino do Hospício dos Enjeitados.

Atormentado pela culpa de ter tomado a vida que deveria ser de outra pessoa, Wilding passa a pedir que seus funcionários encontrem o homem que deveria estar no seu lugar com legitimidade e sua busca leva as pessoas ao seu redor a encontrarem as desventuras, paixões e riscos que ameaçam as vidas humanas quando o que está em jogo é o dinheiro e a ambição


Como uma leitora assídua da produção de Charles Dickens, descobrir em “O Abismo” uma obra relativamente curta e ainda escrita “a quatro mãos” devido a parceria do autor inglês com o escritor de peças de teatro, Wilkie Collins, conhecido como mestre das histórias policiais para os palcos, foi de fato uma grande surpresa. Não que Charles Dickens não seja já previamente famoso por ser um exímio contista: suas narrativas curtas sobre fantasmas, natais e injustiças sociais sempre foram impressionantes. Mas aqui, em “O Abismo”, o encontro da habilidade de construção de personagens de Dickens com a excelente narrativa de investigação e suspense que Collins produz trouxe uma surpresa inesperada, mas muito bem feita. “O Abismo” é um livro que de fato é rápido e dinâmico, mas sua excelente construção dramática e o forte clima de desconfiança que a trama constrói garantem o impacto certo que transforma essa curta história em algo do qual o leitor não vai esquecer. 

Abordando temáticas já consagradas na literatura, “O Abismo” tem personagens que ilustram de forma muito bem sedimentada o que a ganância pode fazer com o ser humano, assim como mostra muito do que fisicamente pode afetar a vida de alguém que se sente extremamente culpado. Wilding é um dos personagens que dá pontapé para a trama, mas de forma inesperada o livro não é sobre ele e sim sobre as consequências que o seu sentimento de culpa gera para personagens que estão ao seu redor, tais como sua governanta e seu advogado. A perspectiva de que teria “roubado” a vida gloriosa que deveria ser de outra criança tira o personagem de cena mais cedo do que o poderíamos prever e assim temos um livro que mostra personagens que inicialmente pareciam ser secundários lidando com os rastros que a preocupação de Wilding deixa para trás. 

Talvez o pobre rapaz tivesse suportado o golpe que o ferira na maior afeição de sua vida; talvez tivesse triunfado, em um impulso de coragem, do sentimento que o consumia; talvez tivesse fechado os ouvido àquela voz que lhe gritava continuamente: “Existe no mundo uma pessoa de quem estás desfrutando a posição e a fortuna”; talvez tivesse desafiado e vencido esses tormentos, uma dessas penas; ambos porém reunidos eram mais fortes do que ele. Um homem atacado por dois fantasmas está por terra em um momento.

O suspense começa não com a investigação direta sobre quem poderia ser essa criança perdida que não foi legitimada e não teve o futuro brilhante que foi entregue a Wilding em seu lugar, mas sim com a vida comum: assim como em toda narrativa dickensiana, é o dia a dia que cria o mistério, o terror e a angústia. Quando novos personagens são inseridos entre um Ato e outro da história é que vemos o quanto as relações sociais podem ser mais suspeitas e gerar mais desconfiança do que um mistério previamente anunciado.

O mais difícil para os personagens do livro não é lidar com as buscas por uma criança perdida, mas sim ter que lidar com a ambição daqueles que estão pairando ao seu redor. Nesse sentido, o livro relembra muito do que são as histórias de Charles Dickens: narrativas essencialmente sobre as patologias e traumas sociais que geram injustiças, mortes, doenças e pequenas opressões do dia a dia. Destaco aqui um dos elementos que já aparecem no começo do texto: Dickens é conhecido pelos seus “órfãos”, já que muitas das suas histórias falam sobre crianças tendo que crescer desamparadas em um mundo hostil e desigual, e aqui em “O Abismo” o que encontramos é um relato muito impactante sobre a realidade de famílias falidas que durante períodos de crise abandonavam seus filhos na porta de igrejas ou de orfanatos por não ter como garantir seu sustento. 

De uma forma também surpreendente, “O Abismo” também é um livro sobre amor, afinal, era de se esperar que em meio aos dramas do cotidiano, um deles seja justamente o drama amoroso. Abordando um pouco sobre as diferenças entre classes sociais, a trama mais romântica fica em segundo plano, mas tem um forte impacto na história e não deixa de mostrar ao leitor o quanto questões sobre dinheiro interferem nas narrativas das pessoas, podendo até mesmo definir seus destinos. Destaco também as cenas de thriller que esse livro possui: as descrições dos momentos de tensão são excepcionais. O leitor fica realmente ávido para ler cada página e não há sossego até que terminemos um capítulo mais agitado e com mais pontas soltas a serem solucionadas. 

De modo geral, “O Abismo” é um livro curto, muito bem escrito e que é recomendado tanto para leitores já conhecidos de Dickens que desejam ver sua excelente parceria com o mundo do teatro ao lado de Wilkie Collins, quanto também é uma excelente porta de entrada para leitores que ainda não tinham nenhum contato com produções do autor. 

O ABISMO

Autor: Charles Dickens, Wilkie Collins

Tradução: E.P. Fonseca

Editora: Nova Fronteira

Ano de publicação: 2019

Charles Dickens foi um dos escritores mais populares da era vitoriana. Suas obras abarcavam as diversas esferas do cotidiano, trazendo à tona uma crítica social que modificou a história da literatura. A amizade com o romancista e dramaturgo Wilkie Collins, um dos precursores do gênero policial, resultou nesta obra a quatro mãos, que traz o que há de mais emblemático na escrita dos dois autores. Publicado originalmente em 1867, tanto em texto teatral quanto em romance, O abismo conta a jornada de Walter Wilding, um rico comerciante de vinhos que leva uma vida de fortuna e prestígio. Após a morte da mãe, Wilding descobre que não é seu filho legítimo. Corroído pela culpa de ter usurpado a identidade e a herança de outro homem, ele decide, então, procurar esse duplo desconhecido. Com uma narrativa de tirar o fôlego, a trama combina a atmosfera única e os personagens bem delineados de Dickens com os geniais enigmas e mistérios de Collins. Esta edição conta com a tradução de E.P. Fonseca e traz apresentação do crítico e escritor Adonias Filho, além de prefácio inédito do pesquisador Daniel Puglia.

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