Espere agora pelo ano passado é o segundo livro do Philip K. Dick lançado pela editora Suma no Brasil. É uma publicação de 2018.

SOBRE O LIVRO

Em um futuro próximo, a Terra está enfrentando uma guerra interplanetária contra uma espécie alienígena insectoide. Apesar de manter as aparências, aos poucos as forças terrestres estão perdendo a disputa e em breve a invasão será iminente. No centro disso, está o ditador e suprema força política terrestre, Gino Molinari, que usa de todas as artimanhas possíveis para ditar as regras do jogo, inclusive se beneficia de suas próprias doenças como estratégias políticas.

“Os seres humanos sempre se esforçaram para reter o passado, para conservá-lo de forma convincente; não há nada de errado nisso. Sem isso, não temos nenhum senso de continuidade, temos apenas o momento.”

É por esta razão que o Dr. Eric Sweetscent é convocado para ser médico interino de Molinari. Sua missão é manter o Dique à salvo, independente das doenças que o acometam. A vitória da guerra – ou a ilusão dela – depende unicamente da presença viva de Molinari. Sem ele, as forças táticas terrestres simplesmente não conseguiriam resistir mais à guerra. Enquanto lida com esse problema, outro grande dilema surge na vida do Dr. Eric: a aparição de uma droga altamente viciante e letal, e que por ventura sua esposa teve acesso.

Enquanto as tramas políticas vão mostrando suas verdadeiras facetas e revelando como são movidas as engrenagens do sistema, o Dr. Eric corre contra o tempo para salvar a vida da esposa. E ao mesmo tempo, tendo cada vez mais acesso à informações ultra-secretas da guerra, começa a questionar a real importância e motivação por trás de todas as atrocidades que as pessoas ao seu redor – entre eles Molinari – executam em nome de uma paz que, talvez, nunca existiu.


MINHA OPINIÃO

A expressão “Philip K. Dick vai desgraçar sua mente” nunca fez tanto sentido como quando eu terminei a leitura deste livro. De fato, ao virar a última página perguntei a mim mesmo: “eu entendi o que o autor propôs com essa história?”. Sério, sinto até um pouco de vergonha em dizer que fiquei na dúvida se realmente havia compreendido o livro como deveria – e ainda tenho essa dúvida. A verdade é que se tratando de Philip, reações assim são mais que normais.

A trama começa da forma habitual do autor: nada fora do normal, apenas os personagens sendo apresentados e com os seus problemas diários a resolver. Logo no começo temos um ligeiro conhecimento do futuro onde a história se passa. Os servo-robôs estão por toda a parte, servindo-nos e substituindo-nos nas mais básicas funções, como taxistas, recepcionistas, garçons, etc. Também vemos que a empatia humana pelas máquinas é baixa, sendo que estas são comumente tratadas com agressividade e consideradas “lixo”. Também ficamos sabendo que a humanidade está em guerra e que há colônias terrestres em Marte e fora do sistema solar. Claro que, tudo isso é pontuado muito rapidamente. O autor não perde tempo em se estender nesses detalhes complementares.

“Como podemos chegar a uma convivência pacífica? Os reegs, estranhamente, tinham uma resposta. Sua resposta era o equivalente a: Vivam e deixem viver.”

Mas aí, ao passar essa fase, tudo desaba. É como se estivéssemos subindo a montanha russa, bem devagar e calmo, para daí lá em cima você olhar para baixo e dizer “meu deus, vou morrer”, e aí começar a descer em alta velocidade pelos trilhos, cada vez mais rápido em direção ao chão. A trama se divide em duas, três ou até mesmo quatro camadas e em cada uma delas tudo vai ficando complexo, alucinante e até mesmo questionável. A começar pela própria figura de Molinari. As doenças de que sofre, são verdade ou só sintomas da própria imaginação? A guerra está mesmo acontecendo ou até uma artimanha política para manter controle sobre a Terra? São várias as questões que logo de cara nos são jogadas, e para cada resposta que aparece, o autor dá uma risadinha debochada e nos joga mais duas ou três dúvidas. E assim vai até perto do final.

Philip K. Dick já havia se aventurado em tramas políticas, como é o caso do seu bem aclamado livro “O Homem do Castelo Alto”, onde ele imagina uma realidade paralela onde o nazismo venceu a guerra e conquistou o mundo. Aqui, porém, as críticas ao sistema político são mais tênues, sutis. O que um homem é capaz de fazer pelo poder, quando este está ao seu total alcance? Quantas atrocidades – e mentiras – podem ser inventadas em nome do “bem maior”? E qual seria esse bem maior?

“Ódio e amor estão intimamente ligados. Muito mais do que a maioria dos terrestres imagina.”

Por outro lado, o livro também trata de um tema delicado, mas intrínseco ao autor e sua vida. O efeitos decorrentes de drogas ilícitas.  Não é à toa que uma delas aparece nessa trama. O autor usa isso como artifício para explicar, ou mesmo justificar, as válvulas de escape que as drogas podem nos apresentar, mas que apresentam sempre um custo elevado (geralmente custa a vida de quem usa). O autor tinha um histórico de uso de drogas ilícitas e que muitas vezes acabaram por influenciar suas histórias. Junto a isso, nos últimos anos ele apresentava um quadro de paranoia latente, o que o levou quase ao precipício completo. Uma de suas obras, Valis, reflete bem esse momento onde o autor lidava com a dicotomia sanidade-paranoia. Percebe-se então, nessa livro em particular, que as descrições envolvendo a droga exploram o lado “bonito” que ela proporciona momentaneamente, mas também a destruição que vai deixando pelo caminho conforme sendo usada.

Claro que o autor se aproveita dessas situações (drogas, paranoia e politicagem) e as une sob a sua marca registrada, a questionabilidade do que é realidade em si. E quando ele entra nesse assunto, eu me senti como se tivesse usado algo alucinógeno. As indagações sobre passado, presente e futuro, a imutabilidade do tempo e a própria definição de localização temporal que temos são levadas ao extremo. Interessante que aqui ele apresenta uma infinidade de opções, mas que no fim das contas você não tem controle sobre elas. Quer mais desgraça na vida de alguém do que não poder ter controle sobre nada, nem mesmo sobre si? Pois aí está. É o jeito Philip K. Dick de ser.

“No que me diz respeito, as drogas deliberadamente viciantes e tóxicas são uma abominação, um crime contra a vida.”

Este é daqueles livros que não dá pra você ter uma opinião completamente formada após ler uma vez. É necessário ler duas ou até mesmo três vezes. Quatro, se for preciso. Porque mesmo sendo uma história de pouco mais de 250 páginas, a profundidade dos temas abordados e as implicações filosóficas e sociológicas dela são grandes. Eu mesmo tenho a plena consciência de que terei de reler essa história novamente daqui alguns meses para olhar pra ela com outros olhos e absorver novas nuances que agora me passaram por entre os dedos.

O título pode parecer estranho, mas aos poucos faz muito sentido. E é brilhante. Porque acima de toda as trapaças políticas e problemas causados por drogas, da guerra que mata milhares e do medo de uma invasão alienígena, o que se discute sobretudo são as ações do indivíduo na sociedade que conhece. Digamos que o mundo a sua volta estivesse desabando, e o seu único refúgio é um tempo passado, uma época em que a paz aparentemente existiu. Você também esperaria pelo retorno do passado ou trabalharia por um presente ideal? Convido você leitor, a refletir.

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ESPERE AGORA PELO ANO PASSADO

Autor: Philip K. Dick

Tradutor: Braulio Tavares

Editora: Suma

Ano de publicação: 2018

O dr. Eric Sweetscent está em apuros. Seu planeta está enredado em uma guerra intergaláctica; sua esposa é letalmente viciada em uma poderosa droga com efeitos colaterais estranhos; e seu novo paciente não é apenas o homem mais importante da Terra, como talvez o mais doente. Em meio a uma crise interplanetária, onde nada é exatamente o que parece, Eric se torna o médico pessoal do secretáriogeral Gino Molinari, que transformou suas misteriosas doenças em um instrumento político — e Eric já não sabe se seu trabalho é curálo ou apenas mantêlo vivo. Navegando entre o impossível e o inevitável, Philip K. Dick nos apresenta um futuro onde a realidade é uma superfície terrivelmente tênue, multifacetada — e faz com que o leitor repense tudo o que sabe sobre o tempo.

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