Ela saiu de casa com mais bagagem do que mãos para carregar. Era hora de pegar o bus e ir pra casa. Ela carregava três bolsas pesadas, cada um com coisas diferentes. Uma ia com os presentes, outra com suas roupas e a terceira era sua ecobag, com o computador e os livros escolhidos para acompanha-la na viagem. Achou um táxi sem dificuldade e se dirigiu a rodoviária. O motorista queria conversar, mas ela não é de bater papo a toa com estranhos, portanto respondeu as perguntas dele com educação e manteve-se em silêncio o resto do percurso. Ela estava triste e nem sabia bem o porquê.

Na rodoviária, colocou a bagagem que continha suas roupas no bagageiro externo e entrou com as outras duas. Colocou a que continha os presentes no maleiro de cima do banco e a outra em seu colo. Colocou os óculos, engatou o cinto e puxou o livro que tinha intensão de ler durante as mais de 4 horas de viagem.

O ônibus estava lotado e logo de cara ela reparou no casal que sentou nos dois bancos em sua frente. Era um casal diferente, desparelho. Ambos já tinham passado claramente dos 60, ele era um alemão alto, de olhos azuis, cabelos ouro desbotado e feição fechada; ela era de pele escura, baixinha, cabelo enrolado e castanho escuro, super simpática e falastrona. Eles demoraram para se acomodar e mesmo depois que ônibus deu a partida o senhor ainda tentava acomodar toda a imensa quantidade de sacolas que sua parceira tinha trazido. Sentou-se a contra gosto, e ficou equilibrando grande parte da bagagem em suas pernas.

Na primeira parada, a pouco mais de 1 hora de viagem, grande parte das pessoas que estava sentada na parte da frente desceu, e os doze bancos da classe executiva se resumiram a ela e o casal, que vinha animadamente conversando alto e, consequentemente, atrapalhando sua leitura. Ela se viu inclinada a prestar atenção nos dois personagens e afastou a mente do livro para observar e ouvir.

O homem voltou a arrumar a bagagem, agora distribuindo as sacolas pelos bancos vazios. Ele pegou duas sacolas e perguntou a mulher porque ela estava levando uma sacola cheia de potes e outra com batatas. A parceira, prontamente, disse que eles tinham potes demais e os parentes de menos e que as batatas iam estragar, então decidiu trazer. Ele não ficou surpreendido com a resposta dela e deu risada, dizendo que nunca vira ninguém levar batatas de Natal.

Naquele momento, além de já ter reparado na estranheza de personalidade entre os dois, a garota também reparou que eles não eram um casal a tanto tempo assim. Entre um papo e outro dos dois, e posteriormente, dos dois com o motorista, a garota descobriu muito sobre aquelas pessoas.

Ambos eram aposentados e estavam a dois anos juntos. Essa era a primeira vez que ele estava indo para o interior conhecer a família da mulher, que tinha uma avó de 108 anos, que estaria esperando na rodoviária. Ela era faxineira e ele motorista de ônibus. A cumplicidade entre os dois era tocante e a forma como engrenaram um papo sem fim com o condutor do ônibus foi admirável. A mulher tinha feito pasteis assados e eles tinha trazido uma térmica de café e uma caixa de bombons, e lancharam ali, sem nenhum receio. Ofereceram o lanche ao condutor, que aceitou com prazer a comida, o papo e o carinho.

Ele olhava pra ela com carinho, e apesar de ter a feição fechada, seu semblante mudava para uma ternura tocante toda vez que falava ou olhava para sua companheira. Ela era brincalhona e gostava de repetir várias vezes a mesma coisa. Por vários momentos ambos brincaram um com o outro e trocaram risos empolgados.

A garota, que só observava, mergulhou em seu livro e deixou as duas pessoas em paz, porém sabia que algo havia mudado, muitas vezes ouvira que a felicidade era contagiosa. Quando se deu por conta a viagem já tinha chegado ao fim e, por mais que carregasse as mesmas três malas, parecia que estava descendo do ônibus um pouco mais leve.

“Ela”, ou a “garota” vai aparecer por aqui com frequência a partir de agora e todos os textos que a envolvam vão estar linkados na categoria Devaneios ;)