Fellside: Estranhos Visitantes é o segundo livro publicado no Brasil do escritor M.R. Carey. Foi lançado em dezembro de 2016 pelo selo Fábrica 231 da Rocco.
SOBRE O LIVRO
Naquele ambiente todo branco, com paredes, roupas e luzes claras, acorda uma jovem com inúmeras queimaduras pelo corpo. Com o rosto desfigurado, Jess Moulson, viciada em heroína, está desorientada e sem saber quem é exatamente. Conforme vai recebendo informações das enfermeiras, descobre que quase morreu em um incêndio que ocorrera em seu apartamento, e que supostamente ela mesma teria sido a responsável. Mas Jess não se lembra de nada, suas lembranças são vagas e a única coisa que consegue sentir é vazio e fracasso.
Seu desprezo pela própria vida fica maior quando descobre que na noite em questão, indiretamente acabou matando um menino de 10 anos que morava no andar de cima. Seu nome, Alex Beech, ficaria para sempre na sua memória. Uma criança inocente que morrera por uma atitude egoísta dela. Haveria pior sentimento de culpa do que esse?
“Não é com suicídio que vamos compensar algo ruim que fizemos… você deve tentar fazer coisas boas daqui para frente..”
Condenada pelo crime de assassinato, terá de cumprir pena na prisão de segurança máxima chamada Fellside, um lugar estranho, preenchido por boatos de que os piores medos de qualquer criminoso se encontram lá. Fellside é uma terra desconhecida, com armadilhas e labirintos, e sobreviver nela é algo que muitos não conseguem. Porém, Jess pouco se importa com o que acontecerá quando chegar na prisão. A única coisa que deseja é desaparecer, amenizar a dor daqueles a quem fizera sofrer e, se for necessário, morrer.
Corroída pela culpa, estranhas visões e vozes de espíritos começam a lhe atormentar, até que certo dia aparece a sua frente o espírito de um garoto. Não é um espírito qualquer, Jess bem sabe, e o que ele tem a dizer vai mudar todas as suas decisões e formas de pensar. A mensagem do espírito do garoto é clara e objetiva, e a partir deste ponto Jess enxergará uma nova chance de viver e de corrigir o que estragou.
MINHA OPINIÃO
Mesmo já conhecendo o autor por ‘A Menina Que Tinha Dons‘, este foi o primeiro livro que leio dele. E ao terminar a leitura, cheguei a duas conclusões: 1) o autor tem uma imaginação enorme, e consegue amarrar muito bem as pontas da história; e 2) porém, a leitura foi extremamente cansativa. Mas vamos começar pela parte boa.
Fellside tem uma lógica muito bem desenvolvida e por vários momentos eu me lembrei das séries Prison Break e Oz, já que a narrativa não se concentra apenas na detenta Jess Moulson, mas também em tudo o que ocorre à sua volta dentro da prisão. Assim, ao invés de a história ser monótona e só ver a cena do ponto de vista da personagem principal, podemos ver a mesma cena de vários ângulos, e obter diferentes conclusões sobre o que está acontecendo, além de entender como isso afeta o dia a dia das demais prisioneiras. Grande parte da trama ocorre no bloco G (Goodall), e algumas tramas em outros ambientes da prisão, como a enfermaria, o estacionamento, o pátio, ou mesmo fora da prisão, como por exemplo, o tribunal.
“Jess teve a consciência de cair. Mas o chão, ao ser atingido, recolheu-se como se ela fosse algo por demais desagradável ao toque.”
A cadeia é descrita como um dos piores lugares para se pagar pelos crimes em toda a Inglaterra. E Jess vai descobrir aos poucos o quão verdade é essa lenda. Porém, de começo, para ela pouco importa o que vai acontecer. Ela até se considera digna de sofrer na prisão, ou quem sabe morrer. Segundo as acusações, ela teria incendiado o próprio apartamento visando matar o namorado enquanto este dormia, e no fim das contas, além de matar acidentalmente o garoto Alex Beech, ela também quase morreu junto, ficando com grande parte do rosto deformado devido às queimaduras.
A vida de Jess sempre foi conturbada e uma das formas que ela encontrava de aliviar as suas ‘dores’ era se dopando com heroína. Sua família sempre foi desequilibrada, seu pai bebia tanto quanto podia. Logo Jess começa a se envolver com certos amigos que aos poucos vão lhe encaminhado ao mundo das drogas. Até que por fim ela começou a se dopar sempre que podia. Sua vida era um lixo, e para ela só importava o prazer que a droga lhe proporcionava naquele momento. Até tudo mudar.
Sua perspectiva e compreensão sobre as coisas vai mudar drasticamente depois que começa a ter contatos seguidos com o espírito de um garotinho. Antes, Jess acreditava que viver já não tinha mais sentido para alguém tão podre quanto ela. Porém, depois da mensagem do espírito, Jess repensa suas atitudes, suas conclusões sobre o que a cerca, e vê que muita das coisas que achou serem verdade não são. O espírito do garoto lhe proporcionou uma nova vida, um recomeço, uma nova chance de entender o que aconteceu na noite do incêndio, e agora fará o que estiver ao seu alcance para concertar as coisas. Ainda que por muitas vezes ela acredite que está ficando louca e que isso seja consequência do seu vício em heroína, a personagem, sairá do fundo do poço e amadurecerá bastante. Sua única certeza é que, seja lá o que for esse espírito – fruto de sua imaginação ou não -, ela precisa se manter viva e descobrir a verdade sobre o seu crime.
“A imaginação é uma energia plástica, srta. Moulson. Uma energia moldável. Nós criamos as coisas que precisamos. E quando não precisamos mais delas, colocamos de lado. Tudo o que você tem a fazer é deixar que isso aconteça.”
Ainda dentro da Fellside, também é interessante ver que, enquanto a Jess vai mudando sua visão sobre as coisas, em sua volta o mundo não parou. Grace é a detenta mais “poderosa” do bloco G, que comanda o tráfico de drogas dentro e fora da prisão, juntamente com alguns guardas corruptos. Porém, sua dominação vai ser afetada pela presença de Moulson, e algumas embates físicos ocorrerão. Além disso, há toda uma conspiração ocorrendo dentro da cadeia, bem abaixo dos olhos da direção e dos demais funcionários. Grace sabe que mesmo tendo domínio sobre o bloco e sobre quem ali permanece, uma hora ou outra Jess se tornará uma pedra no seu caminho, e das grandes.
Talvez esse tenha sido o ponto onde eu mais lembrei dos seriados que mencionei no começo. É uma trama complexa, cheia de veias, onde cada uma vai ter a sua própria trama, mas no fim, tudo vai se conectar de alguma forma. Nada do que acontece ao redor de Jess é por acaso; cada confusão, diálogo, briga, olhares, etc, tudo convergirá na personagem principal. E nem sempre de forma agradável.
“Era evidente que não havia nenhum Deus, nenhuma justiça, ninguém no controle. O universo era uma novela de quinta categoria em que cada reviravolta da história testava os limites da verossimilhança só mais um pouquinho.”
Mas então, qual o problema da história? Bom, não chega a ser um problema, mas foi algo que atrapalhou bastante o meu rendimento na leitura. Como são várias histórias acontecendo ao mesmo tempo, o autor precisou se alongar demais em detalhes sobre o passado e presente dos personagens. As primeiras 150 páginas do livro, por exemplo, são todas focadas na Jess, desde sua condenação, sua internação na enfermaria, recuperação, com alguns momentos voltando no passado e expondo a sua vida de viciada, contando como ela conheceu o garoto Alex e como o apartamento pegou fogo.
Depois disso o livro começa a apresentar o universo dentro da prisão, e novamente, para compreendermos os personagem que ali estão e também acreditar nas suas atitudes, o autor precisou se alongar em explicações sobre o passado, ações, decisões, tudo para justificar o que ele está fazendo. Ainda que tenha sido menos cansativo essa parte, somando-se a primeira, já chegamos a praticamente mais da metade do livro. Ou seja, a história só “pega no tranco” mesmo a partir daí, adquirindo um ritmo mais acelerado, com capítulos mais curtos e intercalados entre os personagens, até fechar o arco de todos eles.
O final surpreende, ainda que algumas coisas já fossem esperadas. Mas há reviravoltas enormes e quando terminou fiquei tipo “como é que é?”. Por isso achei digno dar quatro estrelas ao livro. Ainda que pela narrativa cansativa eu pensassem e dar uma nota menor, a forma como a história é encerrada é muito boa, e de certa forma emocionante. Como eu disse, o que prejudica a narrativa são as descrições demasiadas dos personagens e dos ambientes. Fora isso, tudo é muito bacana.
“Talvez as detentas de Goodall devessem se parecer com vespas. Definitivamente deveriam remeter a coisas tóxicas de modo que quem lidasse com elas se lembrasse de fazê-lo com certo cuidado.”
Acredito que o livro tem uma trama com grande potencial e se daria muito bem se adaptada para uma série de TV, já que um filme teria de deixar fora muitas coisas e certamente geraria uma trama sem o peso dramático que realmente possui. A mensagem que o livro tenta passar é que mesmo diante dos maiores obstáculos, sempre há algo que possamos fazer para melhorar a vida de alguém próximo ou, no caso, para redimir nossos erros.
Jess foi para Fellside para pagar pelo seu crime, mas lá ela não apenas consertou algumas de suas falhas como ajudou outras detentas a encontrarem o caminho para o perdão. A presença do espírito pode até funcionar como uma metáfora para a nossa razão, nos dizendo o que fazer nos momentos onde a emoção impera, mesmo que já estejamos no fundo do poço. Sem dúvida recomendo para quem já está familiarizado com filmes e séries que tem como tema prisões e, também, claro, para quem gosta de narrativas de suspense com pegadas dramáticas e sobrenaturais.
FELLSIDE: ESTRANHOS VISITANTES
Autor: M.R. Carey
Editora: Fábrica 231 (Rocco)
Ano de publicação: 2016
Uma história de terror moderna, perturbadora e emocionante, assinada pelo mestre dos quadrinhos M. R. Carey, pseudônimo de Mike Carey, roteirista de sucessos como X-Men e Hellblazer eautor do cultuado A menina que tinha dons, adaptado para a telona pela Warner Bros (ainda sem previsão de estreia no Brasil). Em seu segundo romance, Carey conta a história de uma mulher que vive em Fellside, uma prisão de segurança máxima localizada nos confins da Inglaterra. Acusada de ter incendiado o seu apartamento e matado por acidente uma criança, Jess Moulson vive afundada em culpa e medo, e sabe que não pode confiar em ninguém ali. Até que começa a ouvir a voz de uma criança. Uma criança morta, que tem uma mensagem para Jess.