Silêncio, dirigido por Martin Scorsese, um dos diretores mais celebrados do Cinema, recebeu uma indicação na categoria de Melhor Fotografia no Oscar 2017. 

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“Silêncio”, dirigido por Martin Scorsese, um dos grandes diretores ainda vivos, é um filme que trabalha temáticas caras ao diretor ao longo de sua filmografia. Scorsese, um cristão, nesta obra tematiza a fé católica sob uma ótica existencialista a partir das angústias e questionamentos de um padre jesuíta em missão no Japão. O título do filme “Silêncio”, é uma alusão ao silêncio divino, ao Deus que não responde, que não parece estar lá ou que parece não se importar, ao Deus que acompanha, mas permanece quieto. É um filme que trata da fé religiosa de maneira realista e sem rodeios, e teve sua estreia oficial feita no Vaticano para o clérigo e para o Papa Francisco, ele próprio, um jesuíta. Meu chute é que ele tenha gostado bastante do filme.

A história segue Andrew Garfield e Adam Driver nos papéis de jovens padres jesuítas (cristãos encarregados de levar a fé cristã ao mundo, ensinando-a e praticando-a) que seguem em missão ao Japão em busca do Padre Ferreira (Liam Neeson), um jesuíta que, enviado lá, foi perseguido pelo regime político japonês e obrigado a, supostamente, renunciar sua fé cristã em nome da religião vigente no Japão (uma vertente do zen-budismo que àquela época começava a declinar). Passando-se em meados do Século XVIII, o filme localiza-se em um Japão tomado por camponeses encantados pela religião promovida pelos jesuítas, perseguidos por inquisidores, logo torturados, e esperançosos pela chegada dos padres Andrew Garfield e Adam Driver.

A direção de fotografia indicada ao Oscar, de Rodrigo Prieto, preocupa-se muito com o naturalismo dos ambientes; sempre que possível, opta-se pelo uso da luz natural e pela iluminação do ambiente a partir de janelas, tochas ou afins, tal como deveria ser naquele tempo. Nota-se também uma baixa saturação das cores durante muitas cenas, ou seja, as paletas não costumam trazer cores puras, mas cores mais fracas e esbranquiçadas, à exceção do preto onipresente, cor da roupa dos jesuítas e que parece trazer consigo a significância do que seria uma forma particular de escuridão associada aos sentimentos que o mundo do filme impõe ao protagonista (no que tange, principalmente, ao questionamento de sua própria fé)

Em uma atuação instigante, Andrew Garfield passa a despontar como uma das novas promessas de Hollywood. Eu, particularmente, prefiro-o aqui do que em sua atuação indicada ao Oscar de “Até o último homem” – filme em que, coincidentemente, também incorpora um indivíduo em conflito entre sua religião e o mundo. Tal nível de atuação é mantido com as competentes performances de Adam Driver e Liam Neeson, além dos excelentes trabalhos dos atores japoneses que estrelam a obra. O que torna a experiência das cerca de 2h40 de filme em algo imersivo e envolvente.

Quanto ao roteiro e à história, apesar do início um pouco desleixado que faz uso de alguns atalhos pouco criativos, como a opção por explicar a história através de diálogos, voice-overs e asserções dos personagens, o que deixou a impressão de uma preparação de terreno para a história (ou de um primeiro ato, sendo mais técnico) meio ansiosa, que completa seus fins, mas usa de meios um pouco preguiçosos. Contudo, depois de posto o terreno para a trama, e a partir do quando ela começa a se desenrolar, o deleite, ao menos para mim, foi inevitável. Filmes e a Arte em geral não tratam de humanos, mas sim de coisas humanas – sentimentos, desejos, sofrimentos, filosofias. “Silêncio”, através da história baseada no livro “Shinmoku” de Shusaku Endo, um clássico da literatura japonesa e projeto antigo de Scorsese, tematiza a religiosidade, coisa muito humana.

É interessante lembrar que o arco de protagonista do filme é famigerado na filmografia scorsesiana – o modelo do homem que tem algo como parte de si, ou posse (fé, riqueza, a vida de um gangster, etc), passa por uma série de provações e atribulações e depois perde-a está presente também em “Touro Indomável”, “Os bons companheiros”, “O lobo de Wall Street” e também no filme reminescente de Silêncio, “A última tentação de Cristo”. E para a trama deste, podemos adotar três interpretações, penso – (i) uma ateísta, (ii) uma não cristã e outra (iii) cristã; o filme é suficientemente rico e complexo para permitir múltiplas ideias:

(i) – Partido da noção da não existência de Deus algum, ou melhor, de religião nenhuma, porque o budismo praticado pelos japoneses não crê em divindades ou transcendência (Buda é um “profeta”, apenas), é triste notar os sofrimentos e perseguições causados por tensões religiosas; pois se não há o divino, isto é tudo sem sentido e até ridículo, e é desesperador imaginar a maneira que muitos morreram em vão e torturados, mortos em nome de suas ilusões. As principais causas de ódio, ao longo da história, se deram por razões religiosas e ainda se dão, e o filme tangecia isto.

(ii) – De uma perspectiva não cristã, é interessante notar a maneira que se deu o modus operanti da colonização cultural e religiosa promovida pela Igreja Católica ao longo dos séculos XVI e XVII. Apesar de ter dado certo aqui no Brasil, tanto é que somos maioria cristã até hoje por conta dessa influência, o Japão apresentava uma outra visão de mundo irremediavelmente diferente da ocidental. Questiona-se até se os cristãos japoneses de fato entendiam o cristianismo por conta das inúmeras barreiras de cultura e linguagem, rememorando-nos de que o cristianismo é mais uma entre muitas religiões existentes, perspectiva que ecoa ao longo do filme quando um personagem é perguntado se acredita em Deus e responde “Em qual deles?”. Aqui, as relações entre religião e cultura são mais próximas do que as relações entre religião e Verdade.

(iii) – A perspectiva cristã, não deixa de ser também a mais interessante, e talvez tenha sido a perspectiva mais cara a Scorsese. Envolto em ares de Kierkegaard, filósofo cristão fundador do existencialismo por tratar das angústias da fé, da escolha e do sofrimento humano, sua tematização cristã explora a ideia da existência do mal em um mundo criado por Deus. Se Deus é perfeito, onipresente, benevolente e onisciente, como pode ele permitir o mal e o sofrimento? Porque dar a seus filhos e crentes as mais difíceis provações? Por que deixá-los cair à tortura? Deus, ao menos estás aí a escutar-nos, talvez a ignorar-nos ou és ilusão nossa? Não só por sua ampla perspectiva questionadora, o filme também é aberto para supor a existência de um Deus cristão que ao invés de salvar a humanidade, escolheu sofrer com ela, por amor e piedade.

Talvez denso em suas temáticas: o sofrimento da condição humana, a ausência de Deus, a perseguição religiosa, o abandono da fé e as implicações e significados reais da fé religiosa, “Silêncio” é a obra de um mestre, um filme de Arte que não cai na obscuridão ou nas armadilhas herméticas, apesar de talvez manter certas barreiras para o espectador-médio. É um filme que, tal qual a existência de Deus exigiria, questiona muito e responde pouco, silencioso.

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SILÊNCIO

Diretor: Martin Scorsese

Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson e mais

Ano de lançamento: 2017

Século XVII. Dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), viajam até o Japão em uma época onde o catolicismo foi banido. À procura do mentor deles, padre Ferreira (Liam Neeson) os jesuítas enfrentam a violência e perseguição de um governo que deseja expurgar todas as influências externas.

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